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Os primeiros capítulos

Os primeiros capítulos
Carlos Rodrigues / Getty Images
Redacción
Felipe Rocha
Publicado el
5 de marzo 2025

João Pereira

Casa Pía, 2024-Presente

Para mim, é um orgulho ter chegado à primeira divisão aos 32 anos. Mas sinto que estou no início da minha história como treinador, e não tenho nenhuma pretensão de controlar o que virá pela frente.

Tudo ainda parece muito recente. O Casa Pia é a minha primeira experiência no principal escalão. Portanto, não me iludo com nada e tampouco perco tempo a imaginar se terei sucesso como treinador. Sou consciente de que tudo pode mudar de uma hora para a outra.

Essa perspectiva, digamos, mais cautelosa, intensificou-se em mim durante a pandemia. Estava na seleção de Moçambique, como auxiliar técnico de Luís Gonçalves, quando peguei Covid e desenvolvi um grave problema cardíaco.

De repente, não podia mais trabalhar. Aqueles meses, sem saber o que aconteceria comigo, mudaram a minha visão de mundo. Entendi que o trabalho era a coisa mais importante das coisas menos importantes da vida.

Não me entenda mal, sou um apaixonado pelo que faço. Desde muito cedo, descobri em mim a vontade de ser treinador. E quando amamos o que fazemos, a dedicação extrema vira algo natural. Mas antes do trabalho, vem a saúde. Antes do treinador, vem o homem.

João Pereira, do Casa Pia, é um treinador de recordes: o mais jovem a vencer uma liga em Portugal e a alcançar o Top-6 da primeira divisão. Joao Rico/DeFodi Images/DeFodi via Getty Images
João Pereira, do Casa Pia, é um treinador de recordes: o mais jovem a vencer uma liga em Portugal e a alcançar o Top-6 da primeira divisão. Joao Rico/DeFodi Images/DeFodi via Getty Images

O futebol de alto rendimento é muito competitivo. E isso faz com que os treinadores estejam sempre no limite. A querer ajudar o jogador, o clube e ser a melhor versão de si mesmos. Portanto, o treinador também precisa de alguns cuidados parecidos com os que têm os atletas.

Precisa se alimentar bem, descansar bem e se cercar de pessoas que o ajudem a evoluir como profissional. Cada detalhe conta nessa competição acirrada que é o futebol de elite. Mas é preciso saber se desconectar de vez em quando. Como dizem por aí: ''Quem só sabe de futebol, não sabe nada de futebol’.

A minha etapa como jogador durou pouco. Ainda no futebol de formação, as lesões encurtaram o meu percurso dentro de campo. De qualquer maneira, eu já identificava em mim um desejo de ser treinador.

"Não me iludo com nada. Sou consciente de que tudo pode mudar de uma hora para a outra"

Eu percebia o quanto o treino influenciava o jogo, e me encantava com os diferentes perfis dos treinadores. Uns, com menos capacidade tática, mas com um forte perfil de liderança. Outros, com mais dificuldades para passar a mensagem ao grupo, mas com bons atributos técnicos.

Naquela altura, eu estava com 17 anos, e a minha grande referência como treinador era José Mourinho. Alguém que unia a capacidade de liderar com um enorme talento para o lado estratégico do futebol.

Na verdade, Mourinho é uma referências para todos os portugueses. Após o sucesso de Mourinho, o mercado de transferências para os treinadores portugueses passou a ser bem mais generoso com os profissionais de nosso país

José Mourinho, bicampeão da Liga dos Campeões à frente de Inter de Milão e Porto
José Mourinho, bicampeão da Liga dos Campeões à frente de Inter de Milão e Porto, é a principal referência de João Pereira. ALBERTO LINGRIA/AFP via Getty Images

A decisão de parar de jogar e iniciar a minha formação como treinador foi muito bem pensada. Embora tivesse apenas 17 anos, foi algo bem mais racional do que emocional. Foi o caminho que escolhi viver.

Nesse contexto, surge a minha primeira oportunidade como treinador. O Grupo Desportivo da Mealhada, que na altura competia na terceira divisão de Portugal, me convidou para liderar a equipe sub-9. Bem, liderar não é exatamente a palavra certa quando se treina crianças de oito ou nove anos. Você não lidera nada, está lá para ajudar as crianças a evoluirem. Aquilo me fez perceber o quanto eu gostava de dar treinos.

"A minha grande referência como treinador era José Mourinho. Alguém que unia a capacidade de liderar com um enorme talento para o lado estratégico do futebol"

Por outro lado, eu sentia que ainda faltava algo: a competição. Por mais que gostasse de ajudar as crianças naquilo que era o sonho delas, eu queria viver o lado competitivo do futebol. E isso, como é óbvio, não deve ser a prioridade na formação, sobretudo nos escalões mais baixos. Percebi, então, que deveria experimentar algo novo.

E os meus próximos passos foram no futsal. Tive a oportunidade de trabalhar em diferentes clubes, de escalões distintos. Aquelas experiências foram fundamentais no meu processo de aprendizagem como treinador.

Passei por clubes da segunda e da terceira divisões nacionais, que me supriram a necessidade de competir em alto nível. Além disso, o futsal oferece muitas ferramentas sobre detalhes táticos do jogo e do desenvolvimento individual do jogador. Ferramentas que, depois, podem ser úteis em diferentes contextos como, por exemplo, no futebol convencional.

Pereira acumula muita experiência no banco de reservas, apesar de sua juventude. Ele começou a treinar aos 17 anos de idade. Carlos Rodrigues/Getty Images for The Coaches Voice
João Pereira acumula muita experiência no banco de reservas, apesar de sua juventude. Ele começou a treinar aos 17 anos de idade. Carlos Rodrigues/Getty Images for The Coaches Voice

Sinto-me privilegiado por ter tido a possibilidade de provar de diferentes fontes de conhecimento. Essa diversidade pode ser resumida em minha etapa no FC Porto. Foram seis anos no clube, exercendo uma gama de funções: scout, analista de desempenho, treinador adjunto, treinador da formação e analista da equipe B. O Porto foi uma escola em minha vida de treinador.

Tive a chance de treinar jogadores como Vitinha, Fábio Vieira, Fábio Silva, e João Mário, quando estavam prestes a entrar na equipe sênior. Hoje em dia, é comum que jogadores de 16, 17 anos estreiem-se nas equipes principais. Quando se treina um jogador dessa qualidade, você aprende com ele. Percebe as soluções que encontra para determinadas situações. E pode usar essa experiência para ajudar outros jogadores no futuro.

"A decisão de parar de jogar e iniciar a minha formação como treinador foi muito bem pensada. Embora tivesse apenas 17 anos, foi algo bem mais racional do que emocional"

O mesmo aconteceu quando trabalhei com Reinildo na seleção moçambicana. Ver de perto um dos melhores laterais-esquerdos do mundo a treinar e jogar te dá uma perspectiva diferente em relação àquilo que devem ser os comportamentos de um lateral com ou sem bola.

Se o treinador estiver atento e absorver esses detalhes, irá se transformar em um profissional mais bem preparado. O treinador também deve aprender com seus comandados.

Desfrutei muito da minha etapa como auxiliar técnico na seleção de Moçambique. Minha experiência prévia como scout foi uma mais-valia quando entrei no universo do futebol de seleções.

Pereira, durante sua passagem pela seleção de Moçambique, treinou o lateral-esquerdo Reinildo (à esquerda na foto), do Atlético de Madrid. Gualter Fatia/Getty Images
João Pereira, durante sua passagem pela seleção de Moçambique, treinou o 
lateral-esquerdo Reinildo (à esquerda na foto), do Atlético de Madrid. Gualter Fatia/Getty Images

Afinal, a função do scout é encontrar indivíduos que se encaixem em um determinado plantel. E na seleção é muito parecido, você também precisa analisar as características do elenco e imaginar se um jogador irá render melhor que outro naquele contexto.

Moçambique podia não estar entre as melhores seleções do mundo, mas o contexto competitivo, no enfrentamento com grandes seleções em competições importantes, me serviu como um grande aprendizado profissional.

A etapa na África também foi interessante sob a perspectiva humana. Como se sabe, infelizmente, Moçambique é um país de enorme desigualdade social. Muitas vezes, nos esquecemos do quão privilegiados somos. Vivemos em uma bolha e, desde então, faço questão de alertar os meus atletas sobre essa condição.

"Desenvolvi um grave problema cardíaco. De repente, não podia mais trabalhar. Aqueles meses, sem saber o que aconteceria comigo, mudaram a minha visão de mundo"

O problema cardíaco me afastou por meses do futebol competitivo. Mas não fiquei parado. Aproveitei o período inativo para visitar diversos clubes e conhecer suas dinâmicas de trabalho. Manchester City, Betis, Sevilla, Eintracht Frankfurt…

Além do aprendizado, você acaba por fazer novos contatos e isso também é fundamental na carreira de qualquer profissional. Nessas andanças, acabei por conhecer o presidente do Amora FC, da terceira divisão portuguesa, onde teria meu seguinte desafio.

Além de seu papel como técnico, João Pereira também trabalhou como analista no Porto. Ele aplica essa experiência em sua gestão no Casa Pia. Carlos Rodrigues/Getty Images for The Coaches Voice
Além de seu papel como técnico, João Pereira também trabalhou como analista no Porto. Ele aplica essa experiência em sua gestão no Casa Pia. Carlos Rodrigues/Getty Images for The Coaches Voice

Foi um trabalho bem-sucedido no Amora. Lutamos pelo acesso à segunda divisão, apesar de não termos conseguido o objetivo. Ao término da campanha, fui procurado pelo Alverca, também da terceira divisão, e aceitei o novo projeto. 

O que vivemos no Alverca foi realmente muito especial. Não apenas conseguimos a promoção para a segunda divisão, como fomos campeões da Liga 3. Tornei-me o treinador mais jovem da história do futebol português a vencer um campeonato nacional.

Mas fui apenas uma das peças daquele projeto vitorioso. Tínhamos uma direção alinhada conosco, que nos ajudou em fases difíceis atravessadas pelo caminho. Foi preciso reformular o plantel, tivemos resultados negativos durante a temporada, mas nos mantivemos unidos.

Agora, tenho a sorte de estar vivendo um cenário idêntico no Casa Pia. Quando todos remam para o mesmo lado, o trabalho flui de maneira natural e você encara com mais sobriedade momentos de turbulência.

"Gostaria de trabalhar na Premier League e ouvir o hino da Liga dos Campeões da Europa de dentro do campo"

Para isso, é fundamental que o clube conheça perfeitamente o treinador que está a contratar. Eu e minha comissão técnica fomos entrevistados pelo Casa Pia e apresentamos um dossiê sobre a nossa metodologia de trabalho.

Não digo que a nossa apresentação seja melhor ou pior do que a dos outros treinadores, mas garanto que é diferente. Envolve muita análise de dados, de treinos e jogos, análise individuais dos jogadores, algo pormenorizado a exaustão, mas que vale a pena para que o clube entenda o que pensamos.

mais perto das vagas às competições europeias do que da zona do rebaixamento. Joao Rico/DeFodi Images/DeFodi via Getty Images
O Casa Pia navega sem sustos na temporada 2024/25. Está bem mais perto das vagas às competições europeias do que da zona do rebaixamento. Joao Rico/DeFodi Images/DeFodi via Getty Images

O Casa Pia tem feito uma campanha acima das expectativas na Primeira Liga. Apesar de estarmos na parte de cima da classificação, seguimos com o mesmo objetivo do início da temporada: evitar o rebaixamento.

Os bons resultados esportivos também trouxeram ao clube oportunidades vantajosas de negociações de atletas. Faz parte do futebol, o treinador precisa se adaptar a isso e reinventar sua equipe.

Hoje, aos 33 anos, sou grato por tudo o que vivi nessa ainda curta história que tenho no futebol profissional. Tenho muitos sonhos para o futuro. Não escondo que gostaria de trabalhar na Premier League e ouvir o hino da Liga dos Campeões da Europa de dentro do campo.

Por outro lado, não tenho receio de voltar à terceira divisão de Portugal se for preciso. Já estive lá, e fui muito feliz. Pude realizar trabalhos extremamente gratificantes.

O futebol só exige que você se adapte ao contexto. É o que tento fazer.

Veremos os próximos capítulos…

João Pereira