Mariana cabral
Sporting Clube de Portugal, 2021-Presente
Talvez, Mariana, a jornalista, perguntasse a Mariana, a treinadora do Sporting, se algum dia imaginou que seria treinadora de futebol. A resposta genuína é que nunca imaginei.
Como imaginar algo que não existe?
Não havia exemplos, eu não conhecia nenhuma treinadora. Eu nem sequer sabia que existiam competições femininas de futebol.
É muito difícil no futebol feminino falar apenas de futebol. Porque ainda há muita coisa a ser feita, muitas lutas que precisamos travar. Há dezenas de conquistas que queremos alcançar antes de ganhar campeonatos.
Estou a falar de direitos e condições de trabalho. Para contar a minha história, não dá para esquecer dessas batalhas. O futebol feminino e o feminismo são indissociáveis.
Sou de São Miguel, uma pequena ilha nos Açores. Na minha infância, não tinha acesso a quase nada do que se passava fora da ilha. O meu mundo era muito pequeno. Eu não tinha referências de mulheres no futebol.
O ponto de virada foi a Copa do Mundo de 1999. Fu impactada pela cena da Brandi Chastain a tirar a camisa, e ficar só de top, para celebrar a conquista dos Estados Unidos. Achei aquela imagem incrível.
"O futebol feminino e o feminismo são indissociáveis"
Havia quase 100 mil pessoas no estádio, e vimos uma mulher sem camisa, a celebrar de joelhos a vitória. Aquilo transcendia o esporte, foi uma atitude libertadora para todas nós. A sociedade não espera aquele comportamento de uma mulher.
Ao se despir da camisa, Brandi Chastain nos despiu de muitas travas impostas desde que nascemos. A minha supresa e o meu encantamento foram completos: as meninas também jogavam futebol e abriu-se um mundo de possibilidades em minha mente.
Saí dos Açores para cursar jornalismo em Lisboa. Nessa altura, eu jogava futebol a brincar. Era apenas uma diversão. Quando jogas futebol com os teus amigos, simplesmente estás a jogar, não pensas muito. É algo intuitivo. Era assim que eu jogava até conhecer Helena Costa.
Ela foi minha treinadora e despertou em mim a vontade de, um dia, também o ser. Com ela, descobri que o jogo e os treinos têm uma lógica. Se estou a fixar uma adversária, ela não poderá saltar para pressionar a minha companheira. Se estou em uma situação de duas contra uma, a cobertura defensiva se desestruturou.
Tudo aquilo era muito fascinante e passei a ler livros sobre futebol. O meu desejo de ser treinadora nasceu ali, mas naquela altura, em Portugal, não havia clubes profissionais femininos. Não havia carreiras de treinadoras e jogadoras a sério, entende?
"Fu impactada pela cena da Brandi Chastain a tirar a camisa, e ficar só de top, para celebrar a conquista dos Estados Unidos"
Eu, por exemplo, tive uma de carreira como atleta. Cheguei a ser campeã nacional pelo 1o de Dezembro. Mas costumava ganhar 100 euros, uma sandes depois dos jogos e, às vezes, uma cerveja. Não dá para chamar de profissão. Decidi parar de jogar aos 25 anos.
A minha atividade profissional, naquele momento, era como jornalista. Ao mesmo tempo, eu fazia estágios como treinadora enquanto não tinha os cursos necessários para ser efetivada na função. Como jornalista do jornal Expresso, pude entrevistar grandes nomes do futebol.
Profissionais do calibre de Sarina Wiegman, Pia Sundhage, José Mourinho, Vítor Pereira, Carlos Carvalhal, Luís Castro, entre outros. A cada entrevista, aprendia algo novo. Aquelas conversas, de muitas formas, me ajudam a ser uma treinadora melhor.
Jamais me esqueci das palavras de Sarina Wiegman que, ao citar Johan Cruyff, disse que preferia vencer por 5 a 4 do que por 1 a 0. Eu compartilho dessa filosofia. Sabe por quê? O futebol praticado pelas mulheres está em um estágio diferente do futebol masculino.
Ainda temos um longo caminho a percorrer e queremos atrair mais gente para andar conosco. E, se calhar, estacionar o ônibus em frente ao gol não seja a melhor estratégia para isso. Há quem goste, mas não é a minha perspectiva.
Para mim, o futebol ofensivo, corajoso e até mesmo caótico, é o melhor caminho para crescermos cada vez mais.
Esse raciocínio pode parecer estranho para um homem. Não sei se algum treinador pensa em melhorar o produto futebol, como um todo. Sinto que esse é um peso a mais para as mulheres, mas não me importo de carregá-lo.
"Mas não há tempo para muitas celebrações. Temos de olhar para frente e seguir crescendo"
Não quero apenas que a minha equipa vença e que minhas jogadoras cresçam. Eu também quero ver a evolução do futebol feminino.
Muitas jogadoras ainda me chamam de ‘mister’. Como se costuma fazer, em Portugal e na Espanha, para se dirigir ao treinador. É a força do hábito. A ausência de uma palavra equivalente para as treinadoras, ou o fato de quaisquer outros termos soarem esquisitos para se dirigir a uma treinadora, acaba por ser revelador desse 'disparate' que é ver uma mulher no comando.
Quando cheguei ao Sporting, em 2016, para comandar a equipe sub-19 e coordenar os escalões de formação femininos do clube, eu seguia no jornalismo, além de treinar a equipe sub-17 do Estoril Praia, e uma equipe masculina da formação do Benfica.
Era o início do projeto, o Sporting estava a implementar as equipes sub-17 e sub-19.
Começamos, assim, do zero. O caminho que percorremos nesses oito anos era inimaginável naquela altura. Mas não há tempo para muitas celebrações. Temos de olhar para frente e seguir crescendo.
Apesar dos avanços, ainda jogamos em campos que não têm as mínimas condições, esburacados e perigosos para a integridade física das jogadoras. Outro dia, um de nossos adversários não tinha um vestiário com estruturas e em condições para receber uma equipe.
O espaço era mínimo, tivemos que nos dividir em dois grupos para entrar, além de conviver com as baratas que lá estavam. Estamos a falar de uma liga semiprofissional, mas com jogadoras de nível de Copa do Mundo. É inadmissível que isso ainda aconteça.
"Sou uma treinadora que tem uma grande paixão pelo jogo ofensivo. Gosto de encontrar soluções para atacar"
Das belas memórias, guardo com carinho o que senti em meu primeiro jogo como treinadora da equipe principal do Sporting. Foi na final da Supertaça, no estádio do Restelo. É um estádio magnifico, com uma vista brutal para o rio Tejo.
A sensação de subir ao gramado é inesquecível. Depois, voltei a sentir algo parecido na minha primeira vez como treinadora em Alvalade. É um estádio muito imponente. Dá um gosto enorme jogar em campos assim.
Apesar da minha formação jornalística, confesso que atualmente não acompanho as análises que a imprensa faz de nossa equipe. Deixei de ver, por não concordar com algumas análises. No meu primeiro ano como treinadora, ainda lia alguma coisa.
Mas depois passou a desestabilizar-me porque as análises e comentários eram facciosos e pouco sensatos. Em Portugal, há pouquíssima gente que acompanhe o futebol feminino com regularidade. Eles só aparecem nos grandes jogos e, assim, muitas vezes a análise acaba por ser superficial.
Sou uma treinadora que tem uma grande paixão pelo jogo ofensivo. Gosto de encontrar soluções para atacar. Mas o mais importante de tudo é o jogo coletivo. Se estivermos juntas, como equipe, iremos superar as falhas individuais e os momentos menos positivos do jogo.
Aqui no Sporting, temos um lema: ‘Mais importante do que ganhar, é ganhar em equipe’. Entender isso é essencial para aquilo que queremos fazer.
O que mais me orgulha em minha trajetória é a tentativa constante de evoluir como pessoa e como profissional. É o que cobro das minhas jogadoras. As vitórias em campo, os títulos, não definem o seu valor.
"Hoje em dia, as meninas sabem que podem ser jogadoras e treinadoras profissionais de futebol. Espero, um dia, ser uma referência para elas"
Celebrar um título é ótimo, mas tenho mais interesse em ver o crescimento das jogadoras. A sensação de ter ajudado uma atleta a evoluir é mais duradoura e, de certa forma, mais real do que a festa por uma conquista.
Poder acompanhar a ascensão de meninas de 12 anos até alcançarem a primeira equipe é tão ou mais prazeroso do que levantar qualquer troféu.
Tenho muitas dificuldades de projetar o meu futuro profissional. Acho que tem a ver com a minha história. Em minha carreira, tudo tem acontecido de uma forma inesperada, sem grandes planos.
Além disso, o futebol te consome muita energia. A vida da treinadora não é nada fácil. Você não consegue se desligar por completo. Sim, há os dias de folga, mas alguém precisa preparar os próximos treinos e analisar os próximos adversários.
A única certeza é que o futebol feminino é o meu lugar. É algo que mexe comigo. Enquanto estiver no futebol, quero destinar a minha energia para a evolução do jogo. Para mim, é um prazer lutar por melhores condições, pela liberdade e pelos direitos das mulheres.
Hoje em dia, as meninas sabem que podem ser jogadoras e treinadoras profissionais de futebol. Espero, um dia, ser uma referência para elas.
Há muitas Marianas dentro da Mariana Cabral. A jogadora, a jornalista, a treinadora… E muitas mais! São pontos muito dispersos, mas que no fundo sempre coincidem em algo central: a paixão pelo futebol.
Mariana cabral
Redacción: Felipe Rocha