pia sundhage
Brasil, 2019-
Eu queria ser menino.
Foi o que pensei no começo da infância. E a razão era simples: eu achava que só os meninos podiam jogar futebol. Portanto, eu também queria ser menino. É louco, não é?
Aos seis anos, eu jogava futebol com os garotos na escola. Esta é a minha primeira memória relacionada ao esporte. Eu e os meninos jogávamos futebol com uma bolinha de tênis. Não tínhamos dinheiro para comprar uma de futebol.
Duas coisas me fizeram ser o que sou hoje: minha família e o futebol. Esta é a importância do futebol em minha vida. Todos os técnicos que tive, cada vestiário que integrei, tudo isso construiu a pessoa que me tornei.
Naquela época de minha infância, as garotas suecas gostavam de jogar à bola, mas preferiam usar as mãos. E os meninos jogavam com os pés. Para mim, não havia dúvidas sobre onde eu queria estar.
Felizmente, a minha vontade foi respeitada na escola. Na hora do esporte, eu sempre estava com os meninos jogando futebol.
“eu achava que só os meninos podiam jogar futebol. Portanto, eu também queria ser menino”
O problema é que aos domingos, os garotos iam a um clube onde disputavam um campeonato. E aí, a minha presença era proibida por ser menina. A sorte foi que o técnico da equipe me chamou para uma conversa a sós: 'Você quer jogar uma partida de verdade, com árbitro, uniformes, balizas e tudo mais?', perguntou.
Acho que foi a resposta mais fácil da minha vida. Então, ele disse que o único jeito seria trapacear um pouquinho. Eu aprendi em casa que não deveria trapacear. Mas ele prosseguiu: 'É só um drible. Em vez de dizermos que seu nome é Pia, diremos que é Pelle'. Assim, 'virei' menino para poder jogar futebol. Eu gostei de ser Pelle.
Alguns anos depois, pude entender que aquele apelido era muito parecido com o do jovem brasileiro que havia encantado o mundo na Copa de 1958. Aí, eu queria ser Pelé. Às vezes, queria ser Johan Cruyff. Outras tantas, queria ser Franz Beckenbauer. Esses eram os meus heróis.
Eu sinto muitas saudades de jogar futebol. É o esporte mais legal do mundo. Tive a sorte de jogá-lo profissionalmente e ter construído uma carreira que me orgulha. Estive em campo no primeiro jogo internacional da seleção sueca nos anos 1970.
“Você tem que lutar. E ninguém vence uma luta sozinho”
Fomos campeãs europeias na edição inaugural da Eurocopa, em 1984. Joguei também a primeira edição da Copa do Mundo, em 91. E a primeira das Olimpíadas, em 96.
O futebol feminino é feito de lutas e conquistas. É um privilégio fazer parte dessa história. Além do orgulho, a jornada deixou também aprendizados. Talvez, o maior deles seja o de que nada vem facilmente. Você tem que lutar. E ninguém vence uma luta sozinho. Foi a união de muita gente que permitiu as nossas vitórias.
É justamente essa união que me faz permanecer envolvida com o futebol. Não sigo na luta apenas pela minha geração. Faço isso também pelas próximas. Hoje, as meninas podem ser atletas profissionais. E não se trata apenas da questão financeira. As meninas, se quiserem, têm o direito de se dedicar ao esporte que amam. Podem passar o dia treinando. Isso é ser profissional.
Quando eu jogava, eram outros tempos. Paralelamente à carreira esportiva, eu tinha outro emprego. Treinava às 07h, ia ao trabalho e, no fim do dia, voltava ao campo de futebol.
“é impossível dissociar a minha carreira do futebol norte-americano”
Não sei exatamente quando decidi virar técnica. O que sei é que fui uma jogadora cheia de opiniões sobre o jogo. Eram tantas que ouvi de um técnico, certa vez: 'Por que você não faz um curso para ser técnica? Verá que não é tão simples assim'.
E não era retórica ou ironia, não. Eu topei e ele me inscreveu no curso. Foi um caminho sem volta. A minha formação como treinadora teve início durante a minha trajetória como jogadora. Aliás, a Pia treinadora nasceu enquanto ainda vivia a Pia atleta. Acumulei as funções no Hammarby, da Suécia, no começo dos anos 1990. Foi a minha primeira experiência como técnica.
Depois de pendurar as chuteiras, permaneci ligada ao futebol sueco. Trabalhei para a federação do país por 11 anos. Um certo dia, um homem americano chamado Mark Krikorian ligou à federação e pediu para fazer um estágio conosco. Ele sabia fazer ótimas perguntas. Passávamos um tempão falando sobre sistemas de jogo.
Anos depois, Mark assumiu o comando do Philadelphia Charge, equipe dos Estados Unidos. Lembrou-se de nossas conversas e me convidou para ser sua auxiliar-técnica. Aquela oportunidade acabou por mudar o rumo da minha vida. Foi minha porta de entrada nos Estados Unidos. E é impossível dissociar a minha carreira do futebol norte-americano.
Dois anos depois, recebi uma oferta do Boston Breakers. Foi a minha primeira oportunidade como técnica principal. Eu me sentia preparada para o desafio porque os anos como auxiliar do Mark tinham sido uma ótima escola. Eu reparava em tudo: como ele fazia para lidar com as atletas, suas estratégias táticas, sua rotina de treinos, etc. Eu já tinha entendido as diferenças futebolísticas e culturais entre EUA e Suécia. Estava pronta para liderar uma equipe.
Hoje, sou uma técnica totalmente diferente daquela Pia do Boston. Pelo menos, no que diz respeito às táticas de jogo. Isso é algo que precisa ser constantemente atualizado. Tem coisa, porém, que permanece idêntica.
Estou falando da filosofia de trabalho. Quais valores são fundamentais para se formar um time? Para mim, a resposta não mudou em nada de lá para cá. Solidariedade e espírito coletivo são a base de toda e qualquer equipe.
Eu fui uma estrela como atleta. Isso não me fez esquecer que o jogo não era sobre mim. O futebol é um esporte de grupo. As estrelas só brilham se jogarem numa equipe organizada e solidária.
“Hoje, sou uma técnica totalmente diferente daquela Pia do Boston”
Em 2007, recebi a primeira oportunidade na primeira equipe de uma seleção nacional. O curioso é que foi outro caminho sem volta. Pelo menos, até agora. Não voltei mais a trabalhar em clubes desde que recebi aquele convite da seleção chinesa para ser auxiliar da Marika Domanski-Lyfors.
No ano seguinte, a poucos meses das Olimpíadas de Pequim, fui convidada para ser a treinadora principal dos Estados Unidos. Uma equipe acostumada a vencer e que vinha de um terceiro lugar na Copa do Mundo do ano anterior.
Em minha cabeça, eu sabia que teria que mudar algumas coisas no time. Afinal, os americanos não trariam uma técnica sueca para deixar tudo como estava. Mas sabia também que não era necessário fazer mudanças radicais. O acolhimento que me deram foi fantástico.
Fizemos vários ajustes defensivos. No ataque, só foi preciso um ou outro retoque. Deu certo. Todos se lembram que ganhamos a medalha de ouro olímpica em 2008.
Nem todo mundo recorda, porém, que estreamos naqueles Jogos com derrota para a Noruega. Foi um momento conturbado. Muitos colocaram em dúvida a nossa capacidade. Nós, não. Sabíamos que tínhamos condições de vencer todos os jogos seguintes, como fizemos.
“Minha influência foi certamente maior no título olímpico nos Jogos seguintes, em 2012”
A final, contra o Brasil de Marta e companhia, foi um jogo extremamente disputado. Havia uma enorme pressão de e para todos os lados. Mas é um privilégio jogar sob pressão. É um privilégio treinar sob pressão.
Carli Lloyd fez o nosso gol dourado na prorrogação. Honestamente, não tive tanto impacto assim naquela conquista. Quando cheguei, os EUA já tinham um time formado. Minha influência foi certamente maior no título olímpico nos Jogos seguintes, em 2012.
Antes disso, porém, passamos por uma enorme frustração com o vice-campeonato na Copa do Mundo de 2011. Perdemos a final para o Japão, nos pênaltis. Adversário que encontraríamos novamente na final olímpica do ano seguinte, desta vez com um desfecho bem mais saboroso para nós.
O futebol tem coisas inexplicáveis. Na final da Copa, jogamos melhor que elas e perdemos. Na final olímpica, ocorreu o inverso. O que não tira o sabor da vitória, claro. Lembro de andar pela vila olímpica nos dias seguintes à conquista ainda incrédula do que tinha acontecido. É difícil colocar em palavras a sensação de vencer o ouro olímpico. É uma felicidade que dura para sempre.
Felicidade também senti ao assumir o comando da seleção sueca. Voltar ao meu país e treinar a equipe na Euro, disputada em casa, foi incrível. Terminamos a competição na terceira posição, mas o futebol transcende o resultado do jogo. Sempre fui boa em aproveitar a jornada. Eu amo o futebol. O meu amor não está atrelado ao resultado. A experiência de ser técnica do meu país é um orgulho eterno.
Não conseguimos o título, mas colocamos o futebol feminino em pauta na Suécia. Isso não é apenas importante para o esporte. É importante para a sociedade. Só que as vitórias dão voz, sabe? Quando você vence, as pessoas têm mais interesse em te ouvir.
“O trabalho precisa ter continuidade para se obter resultados”
Nas Olimpíadas de 2016, sabíamos do tamanho do nosso desafio. Na fase de grupos, perdemos por 5 a 1 para as donas da casa, o Brasil. Não foi um momento fácil. Mas seguimos em frente e, nas quartas de final, batemos as atuais campeãs, os Estados Unidos, nos pênaltis.
Na semifinal, reencontramos o Brasil num Maracanã lotado. Outra vez, conseguimos a vaga após a disputa de pênaltis. Fizemos história ao chegar à final. Tenho muito orgulho da nossa trajetória. Não é sobre perder a medalha de ouro. É sobre conquistar a medalha de prata. Este é o verdadeiro espírito olímpico.
Depois daquele trabalho, eu estava em outro estágio da carreira porque passei a treinar as categorias de base da seleção da Suécia. Meu trabalho era na formação das jogadoras, algo tão importante quanto encantador. Só que aí veio o convite da seleção brasileira e tudo mudou. O desafio me fez sentir honrada e cheia de energia para encarar o novo projeto.
Tenho dito que comandar o Brasil é o principal desafio da minha carreira. Sobretudo, pelas diferenças culturais entre nossos países. Mas encontrei uma equipe com vontade de crescer. Tem sido desafiador e prazeroso.
É gratificante ter uma atleta da importância da Marta ao nosso lado. Alguém com tanta qualidade individual, mas sempre disposta a emprestar seu talento em benefício da equipe.
“É óbvio que sonho em vivenciar uma nova final olímpica. Seria incrível chegar lá com essas talentosas jogadoras brasileiras”
Às vésperas da Olimpíada, sinto que estamos prontas para competir. Temos condições de chegar às quartas de final. E aí, a experiência me mostra que qualquer uma das equipes quadrifinalistas tem condição de vencer o ouro.
A seleção brasileira ainda está em busca de transformar sua capacidade técnica em troféus. A falta de título gera uma enorme expectativa no país. E meu trabalho tem sido encontrar soluções para criar uma mentalidade vencedora. Depois da Olimpíada de Tóquio, teremos Copa América e Copa do Mundo. Tenho dito repetidamente que todas as competições são importantes. O trabalho precisa ter continuidade para se obter resultados.
Claro que se conseguirmos uma medalha olímpica será fundamental para que nos ouçam com mais atenção. Se acontecer, vai nos ajudar de maneira imensurável na sequência do trabalho. Mas a minha meta é fazer o time jogar bem. Se não vencermos, temos que sair de campo com a clara sensação de que poderíamos ter vencido. Eu ficarei muito decepcionada se não jogarmos o nosso futebol.
Isso significa jogar o futebol brasileiro. Não podemos ser um time lento ou burocrático. Ganhando ou perdendo, quero ver uma equipe enérgica. Quero um time organizado, sim. Mas que respeite o estilo de futebol do Brasil.
É óbvio que sonho em vivenciar uma nova final olímpica. Seria incrível chegar lá com essas talentosas jogadoras brasileiras. Seria um acontecimento enorme para mim, para o Brasil e para toda a América do Sul. Veja o futebol feminino e até o papel da mulher nas diversas sociedades sul-americanas. Já imaginou as potenciais consequências de um ouro olímpico?
Certamente, darão mais ouvidos a nós.