André Jardine
América, 2023-Presente
Os treinadores, como as pessoas em geral, têm vários sonhos. Eu procuro alimentar esses sonhos, não deixá-los esquecidos. É uma parte boa da vida, temos que nos permitir sonhar.
Um dos sonhos que sempre tive era dirigir um clube de massa. Um time com uma torcida alucinada, que jogue com o estádio sempre lotado, sabe? Sempre me imaginei vivendo isso.
De certa forma, pude viver essa experiência no São Paulo. Mas foi muito rápida e frustrante. Foi só um gostinho, e eu queria mais. O meu sonho exigia mais. E só pude realizá-lo no América.
Treinar um clube de massa me faz recordar os meus tempos de torcedor. Fui um torcedor fanático, daqueles que vivem o jogo desde as arquibancadas. Acho que isso me faz ser um treinador com conexão com a torcida.
Sei o que esses caras estão sentindo. Tenho a exata noção do que sentem nos grandes jogos, nas grandes conquistas. O que estou vivendo no América desperta esse lado torcedor em mim.
"Um dos sonhos que sempre tive era dirigir um clube de massa"
Mas, claro, são raríssimos os treinadores estrangeiros que poderiam dirigir o América como primeiro clube no futebol mexicano. Só despertamos o interesse do América com o trabalho que fizemos no Atlético de San Luis.
Quando recebi o telefonema com o convite do San Luis, eu estava a serviço da seleção brasileira principal. Tinha sido convidado para integrar a comissão técnica de Tite em dois jogos das Eliminatórias.
Fazia alguns meses que tínhamos conquistado, com a seleção olímpica, a medalha de ouro nos Jogos de Tóquio. Estávamos ainda em conversas sobre qual seria o meu papel na seleção. Não estava claro se eu seria auxiliar na seleção principal ou se continuaria na Sub-20.
Mas eu já tinha um sentimento interno de dever cumprido e uma vontade de retornar à rotina de treinador de clube.
"Fui um torcedor fanático, daqueles que vivem o jogo desde as arquibancadas"
O San Luis tinha muita pressa para definir o técnico porque a equipe tinha iniciado muito mal o campeonato mexicano. O clube me deu dois dias para dar uma resposta.
No meu quarto de hotel, cheguei a conclusão de que a proposta do Atlético de San Luis era exatamente o que eu esperava para a minha carreira.
O clube me oferecia um projeto de médio/longo prazo, com um contrato inicial de dois anos. A oportunidade também era atraente do ponto de vista pessoal. Era a chance de conhecer uma nova cultura, aprender um novo idioma e experimentar novas sensações.
Os resultados não eram o único problema do San Luis. Havia um diagnóstico de que a equipe jogava um futebol totalmente reativo, carecia de ideias de jogo e nem conseguia ficar por longos períodos com a bola.
Era um contraste muito grande em comparação com a minha forma de ver o futebol. Do lugar que o clube estava para onde desejava chegar, havia um longo caminho a percorrer.
"a proposta do Atlético de San Luis era exatamente o que eu esperava para a minha carreira"
O objetivo inicial do clube era evitar a multa aplicada aos últimos colocados da liga. No México, não há rebaixamento, mas os últimos colocados precisam pagar um alto valor - o lanterna paga cerca de 5 milhões de dólares - como punição pela campanha ruim.
A multa seria um grande golpe no projeto do Atlético de San Luis, e o grupo proprietário tinha deixado claro esse objetivo de evitá-la.
Foi um trabalho de pensar jogo a jogo. Naquele momento, não dava para ser muito sonhador. Estava na cara que o time não jogaria como eu queria de um dia para o outro. E precisávamos pontuar no fim de semana seguinte.
O segundo passo do trabalho veio quando conseguimos um fôlego maior na tabela de classificação. Com mais pontos, ganhamos mais tempo para implementar a nossa visão de jogo.
Considero aquele trabalho no Atlético de San Luis como um dos maiores desafios da minha carreira. Ter levado o clube ao playoff da Liga MX - entre os oito melhores classificados – foi um feito inédito na história do San Luis e, àquela altura, teve o sabor parecido com o de um título.
"Os resultados não eram o único problema do San Luis. Havia um diagnóstico de que a equipe jogava um futebol totalmente reativo"
Travamos um confronto extremamente equilibrado com o Pachuca - para mim, o melhor time da liga naquela temporada – nas quartas de final. Empatamos por 2 a 2 em casa, e perdemos por 3 a 2 como visitantes.
Não havíamos contratado nenhum jogador. A mudança drástica de desempenho e resultados foi fruto de organização e trabalho. O balanço daquele primeiro ano no San Luis havia superado a expectativa de todos.
A partir daí, pudemos fazer alterações estruturais no elenco. Identificamos novos perfis de jogadores e reformulamos gradativamente o grupo, com ajustes que achávamos necessários.
Na segunda temporada, a equipe já tinha outra cara. Conseguimos nos classificar para o playoff de novo e, novamente, cruzamos com o melhor time da competição: naquele momento, o América.
"Considero aquele trabalho no Atlético de San Luis como um dos maiores desafios da minha carreira"
No primeiro jogo, em nossa casa, perdemos por 3 a 1. A missão de reverter o placar, jogando no estádio Azteca, era praticamente impossível aos olhos da maioria das pessoas. E foi por muito pouco que não conseguimos o feito.
Dominamos a partida, vencemos por 2 a 1 e estivemos muito perto de fazer ainda mais história. O Atlético de San Luis ficou pelo caminho, mas os frutos do trabalho eram visíveis e cada vez mais chamavam a atenção de toda a gente no México.
A base estava construída, o clube tinha uma ideia clara de jogo. Era notório que o futuro do San Luis seria muito promissor.
Então, surge a proposta do América. Honestamente, não esperava que viesse naquele momento. Eu ainda tinha um ano de contrato com o Atlético de San Luis e queria cumpri-lo.
"Esse contato com a massa que o América nos proporciona é algo viciante"
É difícil explicar aquele sentimento. Se eu pudesse escolher, preferia ter ido ao América um ano depois. Seria legal terminar o ciclo no San Luis. Mas a gente não escolhe o tempo das coisas. E um gigante como o América não te procura todos os dias.
O América é um mundo à parte. O nível de cobrança e de pressão não se compara com o que havia no Atlético de San Luis. E, ao chegar, encontramos um América muito próximo de voltar a vencer. Faltava um detalhe ou outro para que isso acontecesse.
Logo no primeiro torneio, conseguimos ganhar a “14”, como dizem aqui, e interromper um jejum de cinco anos do clube sem vencer a Liga MX. Ao longo da campanha, vivemos noites memoráveis no Azteca com a nossa torcida.
O Azteca é um estádio impressionante, muito imponente e que transborda história. Quando está lotado, com 85 mil pessoas, te dá a sensação de estar dentro de um coliseu. É uma coisa monstruosa.
Em nossa primeira temporada no clube, levamos o América à final da liga. O adversário foi o Tigres. No primeiro jogo, fora de casa, empatamos por 1 a 1. O jogo decisivo foi no Azteca.
"conseguimos ganhar a '14' e interromper um jejum de cinco anos do clube sem vencer a Liga MX"
No sentido de ser a realização de um sonho, de ver o trabalho dar frutos, a emoção que senti naquele dia foi, de certa forma, parecida com a que tive na final dos Jogos Olímpicos de 2020.
Acontece que na final olímpica, entre Brasil e Espanha, em meio à pandemia, o estádio estava vazio. E naquela noite, no Azteca, o América venceu o Tigres (na prorrogação, por 3 a 0) diante de 85 mil torcedores.
A torcida é uma parte fundamental do futebol. O jogo sem torcida deveria receber um outro nome. Esse contato com a massa que o América nos proporciona é algo viciante.
Naqueles instantes finais da prorrogação com o Tigres, com o título já assegurado, eu via e ouvia a festa dos 85 mil torcedores, e sentia um turbilhão de emoções. A sensação era parecida com um sonho.
"É preciso escrever um capítulo de ouro na história do América"
Eu gosto de falar sobre os meus sonhos. Sinto que ao verbalizá-los, de alguma forma, me aproximo deles.
Tenho vários sonhos para a minha carreira. Sinto vontade de, um dia, trabalhar na Europa e poder proporcionar essa experiência à minha família.
Assim como pretendo retornar ao futebol brasileiro e comandar algum dos grandes clubes de meu país. Tenho certeza de que irá acontecer, mas não tenho pressa.
Mas meu sonho imediato é me tornar um treinador histórico do América. Quero poder voltar aqui, em alguns anos, com meus filhos e netos, e ser reconhecido por essa imensa torcida.
Para isso acontecer, não basta um único título. É preciso escrever um capítulo de ouro na história do clube. É preciso ganhar muitas taças.
Afinal, o América também precisa sonhar alto.
André Jardine