Armando evangelista
Goiás, 2023
Sou uma pessoa de objetivos.
Tinha um bem definido sobre minha carreira como treinador: se, aos 44 anos, não fosse capaz de viver exclusivamente do futebol, iria abdicar da carreira. Sem voltar atrás.
Quando estipulei essa meta, eu já era treinador. Mas acumulava o ofício de técnico com o trabalho docente. Por sete anos, treinei a base do Vitória Sport Clube e dava aulas de educação física em diversas escolas de Guimarães e região.
O que ganhava no futebol não era suficiente para alimentar a minha família.
A meta foi alcançada em meu segundo ano à frente do Vitória B. Na primeira temporada, ainda conciliava o trabalho de técnico com o de professor. No segundo ano, as duas atividades começaram a ficar incompatíveis e passei a trabalhar exclusivamente como treinador. Eu tinha 44 anos, justamente a idade limite que havia estipulado para viver exclusivamente do futebol. Deu tempo.
O futebol faz parte da minha vida desde os meus 12 anos. Fui atleta profissional, mas não cheguei a ser um jogador de elite. Passei a carreira inteira em clubes da primeira e segunda divisões de Portugal.
Ainda enquanto atleta, cursei educação física na universidade. Eu não sabia exatamente o que faria após pendurar as chuteiras. Mas a ideia era continuar ligado ao futebol, e eu queria ter o máximo possível de ferramentas para poder escolher a minha futura profissão.
A única certeza era que o futebol me fazia, e faz, feliz.
"se, aos 44 anos, não fosse capaz de viver exclusivamente do futebol, iria abdicar da carreira"
Aos 32 anos, tive uma segunda lesão no joelho e precisei passar por uma cirurgia. Eu já não tinha mais ambição de jogar. Naquela altura, recebi um convite do Vitória para trabalhar nas categorias de base do clube.
Iniciei o meu percurso como técnico no sub-11 do Vitória. Fiquei um ano no cargo, depois fui ao sub-17 e, na sequência, assumi o comando da equipe sub-19, onde fiquei por duas temporadas e chegamos perto do título nacional. O trabalho foi valorizado internamente.
Fui subindo degrau a degrau no Vitória. Tudo sinalizava para uma continuidade desse processo de evolução. Mas houve uma eleição no clube, e a nova diretoria queria que eu virasse coordenador geral das categorias de base.
Não era algo que me aliciava. O que me fascinava era ser treinador.
Portanto, as portas do clube se fecharam para mim. E, naquele momento, eu já me sentia pronto para dar o próximo passo: treinar uma equipe profissional.
Aqueles anos no futebol de formação fizeram toda a diferença no treinador que me tornei.
Tudo o que aprendi na base está muito presente na minha forma de trabalhar atualmente. O futebol de formação me deu os alicerces para encarar a próxima etapa da minha carreira.
Como técnico, não me restrinjo a buscar soluções táticas e estratégicas. Fico muito satisfeito se puder ajudar na evolução de cada jogador. A experiência no futebol de formação te permite enxergar com mais clareza essas detalhes.
"A única certeza era que o futebol me fazia, e faz, feliz"
Você identifica quando um jogador tem dificuldades para entender algum aspecto do jogo ou tem alguma deficiência técnica que se pode corrigir. E por que não ajudá-lo a ser um profissional melhor? Todos querem crescer.
Foi o Vizela que me deu essa primeira oportunidade. O clube estava na terceira divisão do futebol português, e era semiprofissional naquela época. O orçamento era muito limitado, algo que obriga o treinador a buscar soluções mais criativas na montagem do elenco.
A verdade é que foi uma experiência fantástica. Mas durou pouco. Porque oito meses depois, o Vitória voltou a me procurar. Desta vez, com a proposta que esperei ouvir meses antes: assumir o comando da equipe B.
A equipe B do Vitória tinha sido formada naquele mesmo ano, e entrou diretamente na Segunda Liga. As coisas, porém, não estavam correndo bem. O clube estava praticamente rebaixado quando me procurou.
Queriam que eu assumisse imediatamente, para planejar com tempo a temporada seguinte. Ou seja, planejar um retorno à segunda divisão. Naquela altura, dizia-se que o recém-criado projeto da equipe B do Vitória tinha sido um fracasso.
Aos poucos, com muita dedicação e trabalho, fomos mudando essa percepção. Na temporada seguinte, conseguimos a promoção à Segunda Liga. Depois, foram dois anos na segunda divisão, com campanhas muito positivas.
"Como técnico, não me restrinjo a buscar soluções táticas e estratégicas. Fico muito satisfeito se puder ajudar na evolução de cada jogador"
A consistência da equipe atraiu olhares dentro e fora do clube. Passei a ser notado de uma forma diferente do que tinha acontecido, até então, em minha carreira.
Recebi sondagens de outros clubes para assumir a equipe principal, propostas financeiramente vantajosas em comparação com a realidade que eu tinha no Vitória B. Mas não me seduzi porque a direção do Vitória sempre me deixou claro que eu fazia parte do projeto do clube.
No entanto, a sequência dos acontecimentos não foi exatamente como eu gostaria. O Rui Vitória, então treinador da equipe principal do Vitória, deixou o cargo para assumir o comando do Benfica.
E a direção se voltou a mim para substituir o Rui. Não foi um processo rápido, e deveria ter sido gerido de uma outra forma. Foi como se a diretoria me deixasse ali, de stand-by.
Com aquelas sondagens que recebi, caso o Vitória não me desse a oportunidade na equipe principal, eu iria sair e abraçar um novo projeto. Mas fiquei à espera daquela definição.
Quando fui confirmado como treinador do time principal, estávamos a uma semana do início da nova temporada. Nesse contexto, iniciava-se a oportunidade que tanto esperei na vida.
"Tudo o que aprendi na base está muito presente na minha forma de trabalhar atualmente"
Naquela temporada, o Vitória disputou o playoff da Liga Europa. Fomos ao primeiro jogo praticamente com a equipe B. A montagem do elenco foi muito prejudicada com a indefinição após a saída do Rui Vitória.
De qualquer forma, vivi mais uma experiência enriquecedora naquele curto período à frente da equipe principal do Vitória. Todas as experiências nos fazem evoluir.
Quando saí do Vitória, eu tinha uma única coisa em mente: voltar a trabalhar o mais rápido possível. Eu queria mostrar ao mundo do futebol do que era capaz. Por isso, não hesitei em aceitar a proposta do Varzim, que estava na segunda divisão.
Foram quatro trabalhos em sequência em equipes do segundo escalão do futebol português. Varzim, Penafiel, Vilafranquense e Arouca.
O Arouca foi, sem dúvida, um momento marcante em minha carreira. Foram três anos de muito sucesso.
Até hoje, sou o treinador com mais jogos pelo clube. Conseguimos subir da segunda para a primeira divisão, onde igualamos a melhor classificação da história do Arouca na liga, com o quinto lugar, em 2022/23. Levamos o clube à disputa de uma competição europeia.
Quando chegamos, o clube acabara de ser promovido à Segunda Liga. O objetivo, naquele momento, era fazer uma campanha segura na segunda divisão, evitar o rebaixamento, para no ano seguinte ou no próximo, tentar o acesso à elite do futebol português.
", vivi mais uma experiência enriquecedora naquele curto período à frente da equipe principal do Vitória"
Porém, o trabalho resultou tão bem, que logo na primeira temporada alcançamos o acesso à Primeira Liga. E isso, de certa forma, nos colocou em uma situação desafiadora.
Ao atingir a meta de subir de divisão precocemente, seria preciso reformular o plantel. É óbvio que havia jogadores que serviam para a Segunda Liga, mas que não estavam prontos para a divisão de elite.
Mas a ética não nos permitia abandonar aqueles atletas, que nos levaram de volta ao primeiro escalão do futebol de Portugal, e que tinham contrato com o clube. Assim, disputamos a temporada de regresso à primeira divisão praticamente com a mesma equipe que jogamos a Segunda Liga.
Fizemos alguns reajustes possíveis ao longo do caminho e conseguimos assegurar a manutenção na liga.
Na temporada seguinte, com um orçamento baixíssimo, tivemos que nos desdobrar para encontrar reforços que se encaixassem no perfil desejado pela comissão técnica, mas que se encaixassem nessa limitação orçamentária. Foi uma tarefa árdua, mas bem-sucedida.
Em minha última temporada no clube, terminamos a Primeira Liga na quinta colocação, atrás apenas de Benfica, Porto, Braga e Sporting, igualando a melhor colocação da história do Arouca.
A decisão de sair do clube não foi nada fácil. Em toda a minha carreira, sempre fugi da zona de conforto. Nunca tive medo de abraçar projetos difíceis, encarar desafios que, aos olhos de outros, pareciam duvidosos.
"Goiás Era a oportunidade que eu esperava para internacionalizar a minha trajetória como treinador"
É nesse contexto que aceito a proposta do Goiás. Muita gente me alertou sobre as dificuldades, mas eu sabia exatamente aonde ia. Eu escolhi viver aquele desafio. Eu queria experimentar o que era ser treinador no Brasileirão.
Foi a minha primeira chance fora de Portugal, algo que sempre projetei para a minha carreira. E o treinador precisa entender as etapas de sua carreira. Eu não podia ficar sentado, à espera de uma ligação de uma equipe de Champions League.
Quem me abriu as portas foi o Goiás. Era a oportunidade que eu esperava para internacionalizar a minha trajetória como treinador.
Quando cheguei ao Goiás, com o Brasileirão já em andamento e, obviamente sem ter participado da montagem do elenco, tive uma abertura enorme da diretoria para fazer algumas mudanças necessárias.
Não me refiro ao elenco, porque nesse sentido o clube não teve a capacidade financeira de contratar seis ou sete jogadores, como havia prometido, para alavancar a qualidade da equipe.
Tivemos de jogar com o que tínhamos e, no começo, as coisas correram muito bem. Mas em termos de organização do clube, de recursos humanos, houve uma abertura para que começássemos a profissionalizar o departamento de futebol.
" o treinador não controla os projetos que aparecem. Mas espero ter uma nova oportunidade fora de Portugal"
Era importante as pessoas entenderem que faziam parte de um projeto que exigia maior envolvimento e profissionalismo. E foi bem aceito, inicialmente. Cada um respondia pelo que fazia e entendia sua importância na estrutura do clube.
Mas era um ano de eleições no Goiás. E mais gente quis protagonismo. As complicações passaram a existir, houve ali alguma instabilidade. Se as pessoas tivessem continuado, cada uma a fazer o seu trabalho, acredito que tudo teria sido diferente.
Agora, quando começa a aparecer gente querendo protagonismo, reivindicando ser o único causador da boa fase, aí tudo se perde. É uma máquina, as coisas só funcionam bem se cada um fizer a sua parte.
O Goiás tem todas as condições de crescer, mesmo com um orçamento inferior ao da grande maioria dos rivais na primeira divisão, onde deve estar. É preciso se organizar melhor para consegui-lo.
Para mim, foi mais uma fase de aprendizagem. Foram apenas 26 jogos à frente do Goiás, mas valeram a pena e me deixaram com um gostinho de querer retornar ao Brasil um dia.
Olhando para o futuro, gostaria que meu próximo passo fosse em mais uma experiência internacional. É óbvio que o treinador não controla os projetos que aparecem. Mas espero ter uma nova oportunidade fora de Portugal.
Lembra das metas que gosto de traçar na minha carreira? Pois é, daqui a quatro anos, no máximo, espero estar no comando de uma equipe com capacidade de brigar pelo título de competições internacionais.
Há tempo de sobra.