CÉSAR PEIXOTO
Paços de Ferreira, 2023
As lesões acabaram por estimular em mim uma visão mais ampla do jogo. Precisei me reinventar como jogador várias vezes. De extremo veloz, virei um médio interior e, mais à frente, lateral-esquerdo.
Essas readaptações, que me acompanharam ao longo da carreira, acabaram por aumentar o meu repertório de leitura tática do jogo. Fui obrigado a entender melhor cada função em campo. De certa forma, aquelas lesões despertaram o treinador que havia dentro de mim.
De qualquer maneira, tive uma linda carreira como atleta. Foi uma caminhada bonita, consistente e de muita resiliência. Apesar das lesões, tive uma trajetória muito bem-sucedida.
Tenho muito orgulho de tudo o que conquistei com a bola nos pés. No futebol português, ganhei tudo. E venci também no cenário continental: Liga dos Campeões, Liga Europa e Taça Intertoto. E ainda fui campeão do Mundial de Clubes, com o Porto.
Além das taças, tenho muito orgulho de ter defendido a seleção portuguesa. É uma pena que não foram tantas vezes. Não fossem as lesões, acho que teria tido muitas oportunidades mais.
"Mourinho foi muito importante para mim. Ele era um treinador muito diferente de tudo o que eu já tinha visto no futebol"
A lesão de maior impacto aconteceu em um jogo contra o Olympique de Marselha, pela Liga dos Campeões. Eu tinha 21 anos, estava numa fase muito importante da carreira. Foi uma grave lesão no joelho esquerdo.
Foi no ano que o Porto ganhou a Champions League. Eu vinha como titular da equipe, fazendo gols. O momento era excelente.
Havia rumores de que vários grandes clubes europeus estavam interessados em mim. Até porque, naquela época, não havia tantos extremos-esquerdos disponíveis no mercado. E, de repente, tudo aquilo foi interrompido. A lesão acabou por mudar os rumos da minha carreira.
A recuperação foi muito longa, foram quase 8 meses parado. Além disso, quando voltei a jogar, já não era mais o mesmo jogador. Perdi, sobretudo, velocidade e explosão. Segui sendo um bom jogador, mas de uma outra maneira.
José Mourinho foi o grande responsável por me levar ao Porto. Eu estava no Belenenses, em meu primeiro ano na Primeira Liga, e Mourinho estava atento ao mercado. Ele levou ao Porto jogadores que estavam se destacando no futebol português. Paulo Ferreira, Pedro Emanuel, Maniche, eu…
"No futebol português, ganhei tudo. E venci também no cenário continental: Liga dos Campeões e Liga Europa"
Foram contratações assertivas. O projeto era muito bom. Tanto é que aquele time não demorou para engrenar e, logo, ganhamos várias taças importantes, incluindo a da Liga dos Campeões da Europa.
O Mourinho foi muito importante para mim. Ele era um treinador muito diferente de tudo o que eu já tinha visto no futebol. Sua metodologia de treinos era única. Assim como sua forma de pensar e de liderar o elenco.
Ele era muito mais aberto, diria até que muito mais descontraído, sem deixar de ser meticuloso e exigente. Sua maneira de ser cativou os jogadores. Para além de sua enorme capacidade tática, sua personalidade foi crucial para formarmos um bom ambiente.
Naquela época, eu não pensava em ser treinador. Era muito jovem, irreverente, e só queria jogar futebol. Comecei a pensar na ideia anos depois, quando regresso a Portugal após uma passagem pelo Espanyol.
Fui jogar no Braga, então comandado por Jorge Jesus. Foi ali que passei a olhar para o treino de uma forma diferente.
Antes disso, porém, entre o Porto e o Espanyol, cheguei a ficar quase dois anos parado por causa de uma contusão no joelho.
Muita gente, incluindo médicos renomados, dava a minha carreira por encerrada. Fui resiliente, jamais pensei em desistir. Eu acreditava que conseguiria voltar a jogar. E consegui. Voltei ao Braga, fui novamente chamado à seleção nacional, fui ao Benfica e segui em frente.
De qualquer maneira, aquela nova lesão voltou a impactar a minha forma de jogar. Eu já não era mais aquele extremo rápido, forte no um contra um. Precisei me reinventar de novo. Primeiro, virei um médio interior e, mais à frente, o Jorge Jesus me fez virar lateral-esquerdo.
A minha carreira como jogador terminou de uma forma traumatizante. Um dia, acordei de manhã para ir treinar, mas nunca mais voltei a jogar futebol na vida.
Você, que não conhece a minha história, pode estar imaginando que sofri uma grave lesão. Não foi isso. Foi uma desilusão.
Eu estava no Gil Vicente, que buscou uma razão para me demitir. A alegação era de que eu tinha violado normas laborais. Era mentira e ficou provado na Justiça. O clube quis fazer um acordo nos tribunais, mas não aceitei. Pela minha honra, eu tinha que ir até o fim.
"Fui jogar no Braga, então comandado por Jorge Jesus. Foi ali que passei a olhar para o treino de uma forma diferente"
Aquele episódio me marcou demais. Depois, recebi propostas de outros clubes para seguir a carreira, mas perdi a vontade de jogar. Nunca mais joguei futebol, nem com os amigos. Foi assim que me aposentei dos gramados, aos 34 anos.
Como é óbvio, não estava preparado para isso. Fiquei uns dois ou três anos um bocado perdido, sem saber o que fazer. No Gil Vicente, o projeto era jogar três anos e, depois, virar diretor esportivo do clube. De um dia para o outro, os planos evaporaram.
A minha primeira oportunidade como técnico foi no Varzim. O clube estava na segunda divisão portuguesa. Por tudo o que fiz como jogador, pelo meu currículo, talvez fosse possível ''forçar'' uma oportunidade em algum clube da Primeira Liga.
Mas eu não estava muito interessado em começar, necessariamente, na divisão de elite. O mais importante, para mim, era ter uma oportunidade. E foi o Varzim que me abriu as portas.
Faltavam nove rodadas para o fim da Segunda Liga. O Varzim estava na zona do rebaixamento e quase ninguém acreditava que seria possível evitar a queda. Fui chamado de maluco por muita gente. ‘'Vai começar a sua carreira como treinador, assim, nesse contexto tão arriscado?’’.
"A minha carreira como jogador terminou de uma forma traumatizante. Um dia, acordei de manhã para ir treinar, mas nunca mais voltei a jogar futebol na vida"
Mas eu tinha feito um estudo detalhado sobre o plantel. E via potencial de melhora, além de me sentir confiante em poder mudar, rapidamente, o rumo das coisas. Foi um risco. Mas, aos 82 minutos do último jogo da liga, fizemos o gol que valeu a permanência na divisão.
Depois do Varzim, meus dois trabalhos seguintes também foram em equipes da segunda divisão: Académica e Chaves. Essas experiências na Segunda Liga são muito valiosas para qualquer treinador.
É uma realidade totalmente diferente dos grandes clubes. É outro mundo no que diz respeito à parte financeira, mas também em relação à qualidade do plantel. O meu trajeto me dá uma bagagem enorme.
A minha primeira oportunidade na Primeira Liga veio no Moreirense. Ela surgiu quase um ano depois que saí do Chaves. Eu me sentia preparado, mas, novamente, o contexto era muito arriscado.
Foram apenas dois meses de trabalho. Os resultados estavam sendo satisfatórios, mas havia uma discordância entre mim e a direção do clube na visão do jogo e do plantel. Em comum acordo, decidimos que seria melhor terminarmos a nossa união.
Costumo dizer que, no futebol, você sempre tem algo a fazer. Se você quiser evoluir, sempre há algo para estudar e se aprimorar. Entre um projeto e outro, eu e minha comissão técnica procuramos analisar, sobretudo, aquelas equipes que potencialmente poderão nos procurar.
Você conhece o mercado, tem uma ideia do que pode acontecer, e precisa estar pronto a todo momento. No futebol, as coisas acontecem de repente.
"Se você quiser evoluir, sempre há algo para estudar e se aprimorar"
O treinador não tem a opção de escolher os projetos. As possibilidades surgem e você precisa ter a coragem de encará-las. Claro que todo treinador, e eu não sou diferente, espera trabalhar em contextos confortáveis. Isso é o mundo ideal. A vida real é diferente.
Quando fui procurado pelo Paços de Ferreira, eu já tinha feito um estudo pormenorizado sobre a equipe. O Paços não vencia uma partida fazia cerca de quatro meses. Mas aquele estudo me mostrava com clareza que havia muito potencial no elenco.
Fizemos um excelente trabalho e escapamos com folgas do rebaixamento. A melhora de resultados foi tão acentuada que chegamos a sonhar com classificação às competições europeias. Foi uma temporada fantástica.
Renovei meu vínculo com o Paços para a temporada seguinte. Naquele momento, a minha extensão de contrato tinha o gosto da tal estabilidade, do tal contexto mais confortável que mencionei acima. Mas a realidade foi bem diferente disso.
O sucesso dentro de campo na temporada anterior valorizou o plantel. E o clube negociou nove jogadores da equipe titular. Honestamente, eu não estava à espera de que a mudança fosse tão grande.
Além disso, tivemos uma enorme dificuldade para repor as peças. Da mesma forma que o Paços não conseguiu segurar seus principais jogadores, teve dificuldades em competir com outros clubes na hora de fazer novas contratações.
Esse planejamento conturbado cobrou um alto preço quando a nova temporada teve início. Não conseguimos vencer nenhuma das dez primeiras partidas. Era outubro de 2022, e o clube optou pela minha demissão.
Cerca de dois meses depois de minha saída, fui procurado pelo…Paços de Ferreira! Quando ouvi pela primeira vez sobre a possibilidade de voltar ao clube, confesso que achei graça. Pensei que fosse uma brincadeira.
"Mas eu não estava muito interessado em começar, necessariamente, na divisão de elite. O mais importante, para mim, era ter uma oportunidade. E foi o Varzim que me abriu as portas"
‘'Vocês são malucos, isso não pode ser sério’’, eu dizia. Mas os representantes do Paços falavam mesmo a sério. Entendi, então, que não se tratava de uma brincadeira e passei a pensar no assunto. Mas decidi que seria melhor rejeitar a proposta.
Naquele momento, em janeiro de 2023, o Paços seguia sem vencer na Primeira Liga. Era o último colocado com apenas dois pontos conquistados, a mesma pontuação que tinha quando fui demitido. O risco de voltar ao clube era enorme e aquilo não fazia muito sentido.
O que me convenceu foi o pedido dos jogadores. Comecei a receber telefonemas dos próprios atletas pedindo o meu retorno. A nossa relação sempre havia sido de confiança mútua. Aceitei voltar principalmente por eles e pelos torcedores. Mas também pelo clube.
Claro que estipulei algumas condições para retornar. Dentre elas, a contratação de novos jogadores. Era preciso trazer gente nova, naquela janela de inverno, para ter qualquer chance de evitar o rebaixamento.
Infelizmente, não foi possível: o Paços de Ferreira acabou a temporada entre os rebaixados. Mas não me arrependo em nada de ter voltado ao clube. Com um plantel mais equilibrado, teríamos conseguido o objetivo.
O trabalho que eu e minha comissão fizemos em nosso retorno foi positivo. O rebaixamento aconteceu por causa do mau planejamento feito no início da temporada. E me incluo nessa responsabilidade. Erramos todos. Cada um saberá o que poderia ter feito melhor.
Tenho a minha consciência tranquila. Fiz o meu melhor no Paços, como tinha feito e farei em todos os meus clubes.
Neste momento, estou novamente naquela fase de estudos e análise de mercado, à espera do próximo projeto.
O certo é que me sinto preparado para qualquer desafio. Não tenho medo de eventuais rótulos que queiram me colocar pelo rebaixamento do Paços de Ferreira. Desafios como aquele fazem de mim um treinador melhor.
Sou mais técnico hoje do que fui ontem. E sigo cheio de coragem para assumir qualquer risco.