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O princípio de tudo

Héctor Riazuelo
O princípio de tudo
Fotografía: Laurence Griffiths/Getty Images
Redacción
Héctor Riazuelo
Publicado el
octubre 6 2021

JOSÉ GOMES

SD Ponferradina, 2022-Presente

A bola é um brinquedo mágico.

Os demais brinquedos vêm com manual de instrução. A bola, não. As crianças ganham uma bola e têm um mundo de possibilidades à disposição. Podem se divertir como bem entenderem. Não há limitações para a imaginação. Podem explorar o brinquedo como bem entenderem. 

O raciocínio deveria ter relação com o futebol. Afinal, não existe uma única fórmula correta para se jogar o esporte. Mas, na prática, vemos muitas equipes produzindo um futebol mecânico. Com movimentos tão padronizados, que falta espaço para o improviso daqueles jogadores diferentes. Justamente, os que mais atraem pessoas aos estádios. 

"A minha paixão pelo futebol vem da infância. Eu sonhava em ser jogador profissional"

Acontece que a improvisação acaba por assustar muitos treinadores. Sou treinador, entendo perfeitamente o dilema: a continuidade de nosso trabalho está atrelada ao resultado em campo. É natural que assim seja. O problema é exigir resultados imediatos. Neste contexto, nem todo técnico vai deixar espaço para que seu atleta se divirta em campo. 

Aqui, é necessário sublinhar que diversão não é sinônimo de irresponsabilidade. Sentir prazer em jogar e fazê-lo em benefício da equipe não são coisas excludentes. Para o meu gosto, o futebol totalmente padronizado perde a sua essência. É quase como se deixasse de ser um jogo. 

De 1998 a 2003, José Gomes trabalhou como preparador físico no Gil Vicente, Paços de Ferreira e Benfica, antes de inciar sua caminhada como técnico no Paços na temporada 2003-2004. Stephen Pond/Getty Images

A forma como eu vejo o futebol é um reflexo de como vejo a vida. A minha procura pelo sentido estético do jogo é a mesma que tenho no mundo. Busco encontrar a beleza nas coisas e desfrutá-las. 

A minha paixão pelo futebol vem da infância. Eu sonhava em ser jogador profissional. Lembro-me das vezes que fui às escondidas ao estádio das Antas, antiga casa do FC Porto, para ver os treinos abertos da equipe. O estádio ficava relativamente perto da casa de meus avós. Mas se eu pedisse permissão para ir ver o treino, certamente não seria atendido. Então, eu ia sem avisar. E contava com a generosidade de algum adulto desconhecido na fila para dizer que estava comigo. 

Até hoje, tenho viva a lembrança da pele arrepiada ao ver o gramado. Eu sempre quis fazer parte do jogo. 

"Para o meu gosto, o futebol totalmente padronizado perde a sua essência"

Cheguei a jogar nas categorias de base do Valadares FC, que estava na terceira divisão de Portugal. Só que depois veio o serviço militar e, com ele, a tomada de consciência de que o meu nível como atleta era limitado. Em outras palavras, não era suficientemente bom para alcançar aqueles palcos que me faziam arrepiar. 

A partir de então, segui o caminho da universidade. Passei a estudar o jogo. E minha vida tomou outro rumo. O Paços de Ferreira, então na segunda divisão portuguesa, me deu a primeira grande oportunidade na carreira. Como preparador físico, integrei a comissão técnica do saudoso António Jesus.

José Gomes (ao lado direito) começou como técnico aos 20 anos, no FC Valadares. Foto: arquivo pessoal de José Gomes. 

Estava tão eufórico de viver aquilo, que meu interesse não se restringia à minha função. Eu queria aprender de tudo, com todos. Em apenas uma semana de convívio, Jesus me perguntou se eu pretendia virar treinador. Eu disse que sim, deixando claro que não estava de olho no cargo dele. A minha intenção era aprender com ele, para um dia chegar lá. Eu julgava, à época, que precisaria de uns dez anos para que esse dia chegasse. 

Parece mentira, mas foi justamente o tempo que levou. Ao fim de uma década daquela conversa com o mister António Jesus, tempo que passei trabalhando como preparador físico e auxiliar-técnico, recebi o meu primeiro convite para assumir o comando de uma equipe. Foi o mesmo Paços de Ferreira que me abriu novamente as portas. 

Eu me sentia preparadíssimo. Independentemente de qualquer outro fator, achava que minhas ideias seriam suficientes para sermos a equipe sensação do campeonato. Mas a realidade se impôs: nosso início de competição foi desastroso. Perdemos sete jogos nas oito primeiras rodadas. E fui demitido. 

"A frustração de tomar decisões equivocadas é uma maneira eficiente para evoluir"

Não estava, portanto, tão preparado quanto imaginava. O conhecimento técnico é somente uma das partes que formam a rotina do treinador. Naquele momento, por exemplo, eu não estava pronto para lidar com os diretores. 

O trabalho durou pouco, mas o suficiente para eu perceber o quanto fatores externos influenciam no desempenho em campo. Quando tentamos explicar o futebol com uma única área da ciência, erramos. Não importa a área escolhida. A explicação será pobre. 

Bobby Robson comandou o FC Porto entre 1994 e 1996, conquistando a Primeira Liga e a Taça de Portugal. Alex Livesey /Allsport

O jogo é a representação do humano. Como explicar o ser humano utilizando-se de uma única área da ciência? Somos complexos. É simplista achar que o problema de uma equipe está somente na parte técnica, física ou psicológica.

A frustração de tomar decisões equivocadas é uma maneira eficiente para evoluir. Hoje, sou um profissional bem diferente daquele que durou pouco tempo em sua primeira experiência como treinador principal. As pancadas são um estímulo, mas a paixão pelo que se faz sempre é o maior combustível. 

"nosso início de competição foi desastroso. Perdemos sete jogos nas oito primeiras rodadas. E fui demitido"

E quando o tema é a paixão pelo futebol, Bobby Robson me vem à mente. Ele era a personificação da paixão pelo jogo. Na minha época de faculdade, muitas vezes eu deixava de ir à aula para acompanhar o treino do Porto. 

Não haveria aula capaz de ensinar o que aprendi só de ver a forma de trabalhar de Bobby Robson. Ele era exigente, sem deixar de ser um homem de afetos. Era visível que os jogadores gostavam dele. Ele devia ter por volta de 65 anos e entregava-se ao treinamento de uma forma encantadora. Aqueles treinos me marcaram para o resto da vida. 

Jesualdo Ferreira, com uma larga trajetória, é um dos técnicos mais respeitados de Portugal. Paul Gilham/Getty Images

Depois do Paços de Ferreira, passei por outros clubes portugueses, ganhando mais vivência como técnico principal. Até que, em 2008, recebi o convite de Jesualdo Ferreira para ser seu auxiliar no Porto. Foram quatro anos de parceria. Do Porto, o acompanhei ao Málaga, da Espanha, e ao Panathinaikos, da Grécia. 

Nunca encarei aquela oportunidade, de retornar ao cargo de assistente, como um passo atrás. Pelo contrário. Além de ter sido valioso passar aquele período ao lado de um treinador com tanta bagagem, foi a minha oportunidade de entrar em um clube como o Porto. Aquele mesmo clube que me fazia fugir para acompanhar seus treinos. 

"Não haveria aula capaz de ensinar o que aprendi só de ver a forma de trabalhar de Bobby Robson"

Ao fim da parceria, retomei a caminhada como técnico principal. Sentia-me novamente preparado para os desafios. E, de fato, havia me tornado um técnico com muito mais repertório. 

As próximas oportunidades foram todas longe de casa. Primeiro, comandei o Videoton, da Hungria. Depois, o Al Taawoun, mesma equipe que estou agora, em minha terceira passagem pelo clube saudita. E até 2018, fiquei entre o futebol da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos. 

Durante todo esse tempo, porém, a minha vontade era trabalhar na Inglaterra. Eu sonhava com uma oportunidade no futebol inglês. Mas ela não vinha e eu precisava seguir em frente. 

José Gomes dirigiu o Reading em 38 jogos; foram 10 vitórias, 12 empates e 16 derrotas. Harry Trump/Getty Images

Por vezes, trabalhar em mercados menos badalados significa um passo importante para o técnico. Atingir uma independência financeira, te permite ser mais rigoroso com seus ideais. E te deixa menos vulnerável na relação com os clubes. A independência financeira alimentará a coragem de não aceitar injustiças. 

Este era um dos meus objetivos ao migrar para o futebol do Oriente Médio. Mas, ao cabo de quatro anos, desejava regressar à Europa. E foi o Rio Ave, em 2018, que me proporcionou a satisfação de retornar a casa. 

Novamente, a minha experiência na Primeira Liga de Portugal não durou muito tempo. Mas, dessa vez, foi por bons motivos. Conseguimos fazer um ótimo trabalho no Rio Ave. O clube tinha trocado praticamente todo o plantel da temporada anterior. Só haviam permanecido na equipe cinco ou seis jogadores. Apesar da reformulação, conseguimos surpreender com um bom início de campeonato. Além dos resultados positivos, jogávamos um futebol atraente, elogiado por todos. 

"Além de ter sido valioso passar aquele período ao lado de jesualdo ferreira"

Neste contexto, surgiu o convite do Reading. O clube vinha mal na disputa da segunda divisão inglesa, ameaçado de rebaixamento. Para mim, porém, representava a oportunidade que por tanto tempo havia sonhado. 

O 'problema' é que eu não poderia simplesmente virar as costas para quem me permitiu retornar a Portugal. Não seria justo deixá-los na mão. Portanto, disse ao Reading que a conversa não era comigo. Precisariam se acertar com o Rio Ave. Entretanto, questionava-me se valeria a pena trocar um time em boa fase por outro em profunda crise. Depois de muito refletir, decidi encarar o novo desafio. Essas oportunidades não costumam aparecer a toda hora. 

Com o acordo entre os clubes, eu lembrava-me dos treinos de Bobby Robson. Pensava nas arquibancadas cheias dos estádios ingleses. Imaginava-me à beira do campo em um daqueles jogos intensos, que vemos pela televisão. Com esses pensamentos, rumei para a Inglaterra.

O Reading é um dos clubes mais antigos da Inglaterra, fundado em 1871. Atualmente compete na Championship.  Stephen Pond/Getty Images

Encontrei o Reading em uma situação horrível. As coisas do clube não andavam nada bem, em todos os aspectos. Ao chegar, percebi que ninguém ali tinha a menor esperança de evitar o rebaixamento. Ninguém. Direção, atletas, torcedores e jornalistas locais, todos davam a queda como irreversível. O sentimento instalado era de resignação: 'vamos cair, não há outra hipótese'. Até a minha chegada, a média de público em nosso estádio era de cerca de 6 mil torcedores por jogo. 

Portanto, considero que a minha etapa no Reading foi muito boa. Aquele contexto desesperançoso foi rapidamente revertido. Conseguimos seis vitórias na reta final da liga e terminamos com sete pontos de folga em relação à zona do rebaixamento. O torcedor nos abraçou durante a recuperação, o estádio voltou a ficar cheio. O meu sonho inglês teve um começo espetacular. 

"Ao chegar à reading, percebi que ninguém ali tinha a menor esperança de evitar o rebaixamento"

Só que a preparação para a temporada seguinte não foi como eu gostaria. Depois de tudo o que havia acontecido, eu esperava que a direção tivesse minimamente em conta a minha opinião na formulação do elenco. Não foi o que aconteceu. Eu via os erros dos diretores e nada podia fazer. Confesso que foi uma situação desanimadora. Com ela, aprendi outra lição fundamental para qualquer treinador: as coisas erradas que acontecem à nossa volta não podem tirar o nosso foco do trabalho principal, que é cuidar da equipe. 

Eu já não estava feliz. Durante a pré-temporada, em Marbella, na Espanha, ainda estávamos sem o plantel formado e contávamos com quinze jogadores sub-23 no grupo. Quando fiquei sabendo dos atletas que estavam sendo contratados, sem eu ter sido consultado, comuniquei a direção que iria embora. Não queria ser responsabilizado por erros que não eram meus. O clube gastou um dinheiro que poderia ter sido mais bem investido. Fui convencido a ficar, com a promessa de que as minhas sugestões seriam atendidas.

No fim, a definição do plantel ficou muito longe do ideal. Repare que não estamos falando em gastar mais. A questão era ter gastado melhor. A temporada começa nessa onda de desânimo pelos erros cometidos. Em campo, não rendemos e os resultados foram muito abaixo das expectativas. E o clube decidiu por terminar a nossa relação. 

José Gomes chegou ao Almería poucos dias antes da disputa do playoff de acesso à primeira divisão em 2020. Denis Doyle/Getty Images

Abriu-se, então, a possibilidade de retornar ao futebol espanhol, onde havia estado anos atrás como auxiliar-técnico. Assumi o comando do Almería e experimentei sensações semelhantes às vividas na Inglaterra. Ou seja, considero que ali realizamos um excelente trabalho no período que nos permitiram trabalhar.

Dos 42 jogos que tem a segunda divisão espanhola, comandamos a equipe em 36. Batemos recordes, jogamos um futebol vistoso e eficiente, até mesmo quando enfrentamos rivais da divisão de elite pelas copas nacionais. Ajudamos no desenvolvimento de jovens atletas, que hoje estão em um nível superior. 

"sigo sonhando com velhas aspirações. Não perdi a esperança de ser campeão português"

Só Deus sabe se teríamos conseguido o acesso se tivéssemos permanecido até o fim da competição. No fundo, trocar de treinador após 36 rodadas, com o time na terceira colocação, é jogar no lixo todo o trabalho feito desde a pré-temporada. O acesso direto era improvável, mas não era impossível. A segunda divisão da Espanha é muito equilibrada e tudo pode acontecer. 

A opção de trocar de comando naquele momento não me parece a mais sensata. E não está em análise a qualidade de quem assumiu o cargo. O técnico precisa de tempo para desempenhar seu trabalho. Esperar que o novo treinador consiga melhorar tudo em seis jogos, é quase como esperar um milagre. 

José Gomés está em sua terceira passagem como treinador do Al Taawoun. Stephen Pond/Getty Images

Como disse, estou de volta ao futebol saudita, em minha terceira passagem pelo Al Taawoun. Enquanto trabalho duro e desfruto do atual desafio, sigo sonhando com velhas aspirações.

Não perdi a esperança de ser campeão português. Quero ganhar a liga em meu país.

Assim como desejo trabalhar em um clube que me permita sonhar com um título europeu. 

Às vezes, as coisas não acontecem em linha reta. Com algumas voltas, chegamos lá. Quem tem uma bola, tem um mundo de possibilidades à disposição.