Martín Anselmi
Cruz Azul, 2023-Presente
Como diz Marcelo Bielsa, o sucesso nos deforma. Eu acredito na mesma coisa. Quero ter claros os meus objetivos, mas sem esquecer de onde venho.
Meu início como treinador foi marcado por um handicap: não fui jogador profissional. Portanto, eu não fazia parte desse mundo.
A minha maior proximidade com a elite tinha sido durante o primeiro ano de meu curso de técnico. Naquela época, eu admirava muito a maneira como o Athletic Bilbao, de Bielsa, enfrentava seus adversários. Lembro-me particularmente do jogo contra o Manchester United, em Old Trafford, nas oitavas de final da Liga Europa da temporada 2011/12.

Fiquei tão emocionado com aquele duelo, que decidi viajar da Argentina a Bilbao para ver a final da Copa do Rei daquela temporada, disputada entre o time de Bielsa e o Barcelona, de Pep Guardiola.
Mas havia um dilema: para pagar a passagem, seria preciso vender a minha moto. Tive que escolher, e optei pela viagem. Naquele ano, o Athletic também chegou à final da Liga Europa.
"Para começar a trabalhar na Argentina, precisaria da ajuda de alguém. E tive a sorte de recebê-la de Francisco Berscé"
Naquela oportunidade, uma das pessoas com quem viajei à Espanha, conhecia o Claudio Vivas, que era um dos auxiliares de Bielsa. E três noites antes da final, Claudio nos convidou para jantar em sua casa.
A verdade é que ele foi muito gentil conosco. Não apenas nos deu ingressos para o jogo contra o Barcelona, mas também nos deu acesso aos treinamentos antes da final.

Quando me formei como treinador no ano seguinte, eu sabia que, para começar a trabalhar na Argentina, precisaria da ajuda de alguém. E tive a sorte de recebê-la de Francisco Berscé.
Ele havia sido meu professor na escola de treinadores e estava trabalhando na quinta divisão com o Independiente de Avellaneda. Naquela época, eu era proprietário de uma gráfica. Durante o curso, Francisco me pediu para imprimir um talão de faturas para ele.
E um ano depois, houve um momento que mudaria tudo. Por isso, sempre digo que na vida “nada acontece por acaso”. Francisco entrou em contato comigo novamente para pedir que eu reimprimisse aquele talão de faturas. Eu disse que sim, que ele poderia vir buscá-lo alguns dias depois.
"Eu admirava muito a maneira como o Athletic Bilbao, de Bielsa, enfrentava seus adversários"
O tal momento ocorreu enquanto eu supervisionava a chegada de uma nova máquina de impressão - que nos custou uma fortuna -, eu o vi chegando e tive que tomar a decisão da minha vida: a gráfica ou o futebol.
Levei um segundo para tomar a decisão. Esqueci a máquina - minha irmã cuidou disso - e fui falar com ele.

Eu me ofereci para filmar os treinos, montar os cones ou qualquer coisa que me aproximasse da minha paixão pelo futebol. Dois dias depois, Francisco me disse que o Independiente havia dado o sinal verde, mas que seria um trabalho não remunerado.
Não importava. Uma porta se abria pela primeira vez.
Naquele momento, em meados de 2014, Gabriel Milito trabalhava na equipe B do Independiente. Eu e Francisco começamos a analisar os adversários, íamos aos jogos e, depois, Francisco entregava a Gabi um DVD sobre cada oponente, que o treinador utilizaria em suas palestras com os jogadores.
No entanto, essa fase durou pouco. Depois daquele semestre, Gabi deixou o Independiente e Francisco perdeu poder no clube. Para mim, o desfecho foi ficar sem o emprego.

Felizmente, pouco tempo depois, a ajuda de Francisco voltou a aparecer. Ele me recomendou ao Excursionistas, um clube da quarta divisão da Argentina, em 2015. Esse foi meu primeiro trabalho como técnico principal e um dos mais felizes da minha vida. Eu treinava os garotos nascidos em 1997. Esses meninos foram os meus primeiros comandados, e os que mais gostei de trabalhar.
Como não tínhamos um campo para treinar, fazíamos isso em um parque a dez quadras das instalações do clube. Levávamos todo o material e lá, no parque, tínhamos que brigar com o passeador de cães de plantão, para que fosse a outro lugar, ou reivindicar o espaço a um personal trainer. Comprei fitas e outras coisas para delimitar o nosso campo de treinamento. Era preciso muita engenhosidade, mas eu adorava isso.
"Tive que tomar a decisão da minha vida: a gráfica ou o futebol"
No estádio onde jogávamos como mandante, não havia arquibancadas. Mas havia uma árvore. Então, me ocorreu que minha esposa poderia filmar as partidas de lá. Antes de cada jogo, eu a ajudava a subir na árvore, com o tripé e a câmera.
Lembro-me que, nos primeiros jogos, ela não se sentia à vontade. Chegamos até a discutir em casa, porque às vezes ela perdia algumas jogadas. Essas discussões não duravam quase nada: minha esposa sempre foi e é fundamental para mim em tudo o que faço.

Eu estava muito feliz no Excursionistas, mas um ano e meio depois o Independiente reapareceu em minha vida. A proposta era irrecusável. Gabi assumiu o time principal em meados de 2016 e convidou Francisco para fazer parte de sua comissão técnica, que, por sua vez, sugeriu meu nome para ser analista.
O Milito me deu a chance de trabalhar no futebol profissional pela primeira vez. E ele também abriu muito a minha cabeça. Eu gostava do futebol posicional, e ele havia jogado por cinco anos na mãe do futebol posicional: o Barcelona de Guardiola. Ele trazia tudo isso consigo, e conversar com Gabi no dia a dia, e ver como planejava os jogos, foi um pouco como estar com Guardiola.

Quando a minha etapa no Independiente chegou ao fim, fui com Francisco, como seu auxiliar, ao Atlanta, um clube da terceira divisão do futebol argentino. Tivemos que montar um projeto do zero, e a ideia era competir com jogadores jovens. Assim, fomos buscar atletas nas equipes reservas de vários clubes da Primera División e montamos o nosso elenco que, no ano seguinte, já sem a nossa presença, acabou por conquistar o acesso.
No final da temporada 2017/18, eu disse ao Francisco que queria começar minha carreira como técnico ou deixar a Argentina. Eu sentia que o futebol de lá não era compatível comigo: os prazos eram muito curtos para um treinador e, como eu disse, é muito difícil trabalhar sem ter sido um jogador de futebol profissional. Por outro lado, sempre tive uma dose de ousadia nas minhas decisões, confiando em mim mesmo e na ideia de que algo iria acontecer.
"Eu gostava do futebol posicional, e ele havia jogado por cinco anos na mãe do futebol posicional: o Barcelona de Guardiola"
O passo seguinte foi dado em março de 2018, quando viajei ao Equador. Lá, com a ajuda de pessoas com quem convivi, como Hernán Pellerano, no Independiente de Avellaneda, e Juan Martínez, no Atlanta, consegui marcar reuniões com vários treinadores.
Consegui também uma conversa com Roberto Olabe, que havia sido chefe de estratégia esportiva do Independiente del Valle.

Durante o papo, mostrei a Olabe movimentações de jogo que eu utilizava em minhas equipes e houve uma, em particular, que chamou sua atenção. Em resumo, nessa jogada, o meio-campista interior recua para formar uma dupla de volantes, criando espaço no setor ofensivo. Se isso acontecer, o lateral deve avançar e ocupar a posição originalmente deixada pelo meio-campista. Caso contrário, significa que o lateral estará livre para explorar uma situação de 2 contra 1 (interior-lateral) contra o meia adversário. O objetivo da jogada é encontrar espaços quando as linhas defensivas do adversário estão muito compactas. Olabe, então, pegou seu ipad e começou a desenhar jogadas e a trocar ideias comigo. Nada de concreto saiu daquela conversa, mas isso viria a acontecer depois, na reunião que tive com Jorge Célico.
"Na Argentina, é muito difícil trabalhar sem ter sido um jogador de futebol profissional"
Jorge, que era o diretor das seleções de base do Equador na época, havia trabalhado na Universidad Católica do Equador e me disse que havia uma oportunidade de treinar a equipe B do clube. Na Católica (temporada 2018/19), tive uma experiência fantástica de aprendizado. Não apenas no futebol, mas também no que significou viver em um outro país e já com Lorenzo, meu primeiro filho, em nossas vidas.
Contei também com o apoio de Santiago Escobar, técnico do time principal, que me abriu as portas e me tratou de forma extraordinária.

No final do semestre, recebi duas propostas. Uma do Real Garcilaso, do Peru, e a outra do Independiente del Valle, do Equador.
No clube peruano, me ofereceram ser o diretor da formação e, ao mesmo tempo, o técnico da equipe B. Parecia um bom desafio e um projeto muito ambicioso. Então, decidi aceitá-lo.
Achei que conseguiria implementar a minha metodologia de trabalho. No entanto, logo percebi que isso seria impossível e, depois de três meses, fui embora.
"Com Miguel, aprendi a ser um melhor líder e uma melhor pessoa"
Retornei à Argentina, ao meu ponto de partida. Porém, em uma situação muito pior, porque eu não tinha mais a gráfica e tampouco onde morar. A minha sogra nos salvou e abriu as portas de sua casa.
Felizmente, essa fase difícil durou apenas três meses. Miguel Ángel Ramírez foi nomeado técnico do Independiente del Valle - eu o havia conhecido em uma conversa de seis horas de duração, ocorrida graças à intermediação de Olabe - e ele me ofereceu a vaga de auxiliar em sua comissão técnica.

O futebol é assim. Comecei 2019 a trabalhar no Peru, e depois vivi tudo aquilo que mencionei, e terminei o ano vencendo a Copa Sul-Americana ao lado de Miguel. Passamos dois anos juntos no Independiente del Valle, antes de nos mudarmos ao Brasil, onde trabalhamos no Internacional.
Conhecer Miguel e o del Valle representa um ponto de virada em minha carreira como treinador. Com ele, aprendi a ser um melhor líder e uma melhor pessoa. E o clube se tornou minha casa, minha segunda família.
" O trabalho pode ser bom ou ruim independentemente do resultado"
Levei muito tempo para seguir meu próprio caminho, mas era algo que meu corpo pedia. Assim, ao término de nossa etapa no Inter, seguimos caminhos diferentes.
Meu primeiro trabalho como treinador principal foi no Union La Calera, do Chile. Eu achava que estávamos no caminho certo, mas tive de sair no meio do ano, depois de muitos altos e baixos. De qualquer forma, sempre serei grato ao Cementero.
Eles me deram a chance de dar meu primeiro passo no futebol profissional.

Depois dessa experiência, o futebol me surpreendeu mais uma vez. Quase imediatamente após a minha saída do Chile, voltei ao Equador, a minha casa.
Dessa vez, como técnico do Independiente de Valle. E muita gente já conhece a história: fomos campeões da Copa Sul-Americana de 2022, ao bater o São Paulo na final. E um mês depois, ganhamos a Copa do Equador. Dois títulos no mesmo ano.
"Minha família me faz ser o mesmo de sempre"
Após o jogo contra o São Paulo, na decisão da Copa Sul-Americana, viralizou uma resposta que dei na coletiva de imprensa. Um jornalista opinou que o nosso planejamento tinha sido excelente, e respondi que tinha sido bom porque tínhamos vencido. Mas que se tivéssemos perdido, teria sido bom na mesma. E talvez ele tivesse outra opinião.

Minha intenção com essas palavras foi explicar que os processos ou os jogos em si não devem ser analisados pelo resultado. Eles influenciam e contaminam a opinião. O trabalho pode ser bom ou ruim independentemente do resultado.
Por isso, quando perdemos, nós, treinadores, nos sentimos muito sozinhos. Nesses momentos, as pessoas que temos ao nosso lado, no dia a dia, são fundamentais. No meu caso, elas são muito importantes em minha jornada. Bárbara, minha esposa, e meus dois filhos: Lolo e Lucca.
Estejam longe ou perto, eles me fazem ser o mesmo de sempre.

Martín Anselmi