Portugués 13 min read

“Posso ser obsessivo com a posse da bola”

Felipe Rocha
“Posso ser obsessivo com a posse da bola”
Carlos Rodríguez/Getty Images - The Coaches' Voice
Redacción
Felipe Rocha
Publicado el
agosto 17 2022

Paulo Fonseca

Lille, 2022-Presente

O tempo que passei após deixar a Roma, em maio de 2021, foi o mais largo que vivi longe do futebol.

Os primeiros meses não foram difíceis, mas depois comecei a sentir muita falta do jogo. Gosto de minha profissão e estava pronto para retornar, para encontrar um projeto adequado, com gente comprometida com as minhas ideias.

Estive a ponto de ser o novo treinador do Tottenham. No fim, não aconteceu. Mas ainda espero trabalhar na Inglaterra um dia. O futuro dirá, mas agora estou muito feliz no Lille. Entretanto, depois de sair de Roma, fui viver em Kiev. Tenho uma esposa e um filho ucranianos. Portanto, eu estava vivendo ali quando o país foi invadido pela Rússia. Evidentemente, estávamos acompanhando as notícias, mas não imaginávamos que o conflito chegaria tão longe e que aconteceria o que aconteceu. Em 2022, isso não deveria ser possível.

Fonseca, em seu primeiro jogo à frente do Lille na Ligue 1; em casa, vitória por 4-1 contra o Auxerre.
Fonseca, em seu primeiro jogo à frente do Lille na Ligue 1; em casa, vitória por 4-1 contra o Auxerre. Matthieu Mirville/BSR Agency/Getty Images

A guerra chegou a Kiev às 5h da manhã de 24 de fevereiro. Estava em casa e acordei com o barulho das bombas. Seria difícil descrever o pânico. Nunca havia vivido algo parecido. Essa era a realidade que estávamos vivendo. Muito difícil.

Tentamos encontrar maneira de sair da cidade, mas provou-se impossível porque todo mundo estava tentando a mesma coisa. O tráfego parou.

Darijo Srna e Vitaliy Khlivnyuk, respectivamente, diretor de futebol e gerente de equipe do Shakhtar Donetsk, um dos clubes que trabalhei, me convidaram para ir ao hotel onde os jogadores brasileiros vivem com suas famílias e equipes técnicas.

"OS UCRANIANOS SÃO MUITO HUMILDES E GRANDES TRABALHADORES. SÓ QUEREM VIVER EM PAZ"

“É melhor que não vá embora hoje, porque é impossível", me disseram. “Fica e veremos o que vai acontecer”.

Fiquei com a minha família e com a de minha mulher. Então, entrei em contato com a embaixada de Portugal, que colocou à disposição um micro-ônibus para que as pessoas saíssem do país. Durante 25 horas, não paramos de viajar. Com a ajuda do presidente da Federação Portuguesa de Futebol e da Associação Ucraniana de Futebol, conseguimos cruzar a fronteira com a Moldávia e, depois, com a Romênia. Finalmente, voltamos a Portugal.

Quando olho para trás, o que tive que suportar - comparado com as pessoas que seguem por lá até agora - não foi nada. A tragédia é tão grande que não posso falar de minha experiência. Ali, as pessoas estão vivendo uma tragédia a cada dia.

Fonseca viveu o início da guerra da Ucrânia em Kiev. Carlos Rodriguez/Getty Images - The Coaches' Voice
Fonseca viveu o início da guerra da Ucrânia em Kiev. Carlos Rodriguez/Getty Images - The Coaches' Voice

O resto do mundo não se esforça suficientemente para salvar as crianças e o povo de lá, que lutam por suas vidas. Para mim, é a parte mais difícil de tudo isso.

Eu também tenho dificuldades em aceitar como podemos deixar que algo assim aconteça. Temos que fazer muito mais, ou então, muitas pessoas mais - crianças incluídas - morrerão. Elas só querem viver em paz.

Os ucranianos são muito humildes e grandes trabalhadores. Quando o Shakhtar me ofereceu o cargo de treinador, em junho de 2016, foi uma decisão fácil.

"GANHAMOS DO MANCHESTER CITY NA CHAMPIONS LEAGUE, FOI A PRIMEIRA DERROTA DELES EM 29 JOGOS”

Estavam acostumados a jogar a Liga dos Campeões, e eu também queria treinar um clube capaz de vencer a liga nacional. Eu já tinha estudado o clube antes, em 2014, quando ainda estavam em Donetsk. Desde então, não tinham vencido a liga.

O clube era muito bem organizado e tinha ótimos jogadores, entre eles, vários brasileiros como, por exemplo, Fred e Bernard. Eu achava que podíamos ganhar a liga ucraniana e ser competitivos nas competições europeias.

O conflito na região de Donetsk fez com que o Shakhtar tivesse que se mudar a Kiev durante a semana, e que nos primeiros seis meses tivéssemos que viajar a Lviv para jogar as partidas como mandante. Depois, o clube se mudou a Kharkiv, que fica mais perto de Donetsk - cidade que muita gente tinha ido para fugir de Donetsk -, portanto, ali tínhamos mais torcida.

Fred foi um jogador crucial no Shakhtar Donetsk de Fonseca, multicampeão no futebol ucraniano, antes de se transferir ao Manchester United. Matthew Lewis/Getty Images
Fred foi um jogador crucial no Shakhtar Donetsk de Fonseca, multicampeão no futebol ucraniano, antes de se transferir ao Manchester United. Matthew Lewis/Getty Images

Durante três temporadas seguidas, tivemos que voar umas 125 vezes. No começo, foi bem complicado. Nunca chegou a ser fácil, mas nos acostumamos.

Ademais, eu herdei o posto deixado por Mircea Lucescu, que tinha comandado o time por doze anos. Muitos jogadores estavam acostumados com seus métodos, que são bem diferentes dos meus. Porém, esses mesmos jogadores aceitaram facilmente o que eu pedia. Todo mundo gosta de jogar, de ser importante, de ter a bola. E o futebol que tentávamos praticar potencializava os jogadores.

Eles também queriam vencer, e com estilo. Claro que a qualidade deles foi crucial, mas era um elenco aberto, que rapidamente assimilou as nossas ideias.

"UM JORNALISTA TINHA ME PERGUNTADO QUE FANTASIA EU USAVA QUANDO PEQUENO, E RESPONDI QUE A DO ZORRO. SE GANHÁSSEMOS DO CITY, TERIA QUE USÁ-LA”

O vestiário - formado majoritariamente por brasileiros e ucranianos, com culturas muito diferentes entre si - também era fácil de administrar. Havia uma boa relação entre os atletas, e os brasileiros tinham se adaptado muito bem. Então, tínhamos um grupo sólido. O ambiente era realmente bom, o que contribuiu para a construção de uma equipe tão forte.

O clube também merece crédito porque o ambiente era organizado por eles, como se viu depois que ganhamos do Manchester City por 2 a 1 pela Liga dos Campeões, em dezembro de 2017. Foi a primeira derrota do City em 29 partidas, e nos levou às oitavas de final.

Depois de um jogo anterior àquele, um jornalista tinha me perguntado que fantasia eu usava quando pequeno, e respondi que a do Zorro. Então, Vitaliy, diretor de nossa equipe, me propôs uma aposta: se ganhássemos do City, teria que ir fantasiado à coletiva de imprensa.

Fonseca se fantasiou de Zorro depois da vitória do Shakhtar contra o City de Pep Guardiola. Stanislav Vedmid/AFP via Getty Images
Fonseca se fantasiou de Zorro depois da vitória do Shakhtar contra o City de Pep Guardiola. Stanislav Vedmid/AFP via Getty Images

Não é que desacreditava que podíamos vencer - eu acreditava -, mas encarei pelo lado divertido da coisa. O futebol pode ser tão sério que ajuda saber se divertir para aliviar a tensão. Na verdade, eu não esperava que tivessem a fantasia pronta já para conferência pós-jogo. Mas estava tudo preparado. A mim, restava vesti-la.

Naquele momento, a minha carreira como treinador já durava doze anos. Parei de jogar muito jovem, aos 32 anos, porque não me sentia mais motivado.

Nos meus últimos anos como jogador, sofri inúmeras lesões. E já estudava para ser treinador quando o presidente do Estrela da Amadora, onde eu jogava, me propôs treinar a equipe sub-19.

“TERMINAR A LIGA EM TERCEIRO COM O PAÇOS DE FERREIRA, ATRÁS APENAS DE PORTO E BENFICA, FOI ALGO HISTÓRICO”

Iniciar a seguinte fase de minha carreira era algo que me motivava. Assim, passei os dois anos seguintes nesse cargo. Foi uma grande experiência, e foi muito importante ter iniciado naquele nível.

Na sequência, comandei o Dezembro e o Odivelas, antes de assumir o Pinhalnovense, em 2009. Ali, superamos as expectativas ao chegar duas vezes às quartas de final da Taça de Portugal.

A Taça representa uma oportunidade de mostrar seu trabalho e a forma de jogar de sua equipe. Na segunda vez, enfrentamos o Porto, dirigido à época por André Villas-Boas. Perdemos, mas tivemos uma atuação muito positiva, o que foi importante. Todo mundo viu o jogo. Dois anos depois, o Porto me ofereceu trabalho.

André Villas-Boas eliminou o Pinhalnovense, então dirigido por Fonseca, na Taça de Portugal. Aquele Porto acabou conquistando a Taça, a Primeira Liga e a Liga Europa naquela temporada. Jamie McDonald/Getty Images
André Villas-Boas eliminou o Pinhalnovense, então dirigido por Fonseca, na Taça de Portugal. Aquele Porto acabou conquistando a Taça, a Primeira Liga e a Liga Europa naquela temporada. Jamie McDonald/Getty Images

Meu próximo passo importante foi em 2012 no Paços de Ferreira, que representou uma nova grande oportunidade para mim. O Paços é um clube modesto, mas incrível. É como uma família. Naquele ano, construímos uma equipe muito, muito boa e jovem. Terminar a Primeira Liga na terceira colocação, atrás apenas de Porto e Benfica, foi algo histórico. Nunca havia acontecido com o Paços, portanto foi algo incrível para o clube, para a cidade e, claro, para a minha reputação.

O segredo de nosso êxito foi criar uma grande família, uma equipe valente e ambiciosa, repleta de jovens talentos que queriam demonstrar o seu valor. Quando começamos a ganhar jogos, começamos também a acreditar que era possível conseguir algo especial naquela temporada.

E não se tratou somente de terminar em terceiro a liga. Jogamos um futebol muito positivo, que potencializou os jogadores e permitiu ao clube fazer bons negócios e seguir crescendo. Além disso, tudo foi possível por causa da dinâmica do grupo e do ambiente acolhedor que criamos.

"O FINAL NO PORTO TINHA SIDO DIFÍCIL. AS EXPECTATIVAS ERAM MUITO ALTAS, E EU TAMBÉM CRIEI ESSAS EXPECTATIVAS”

No fim da temporada 2012/13, o Porto me ofereceu o cargo de técnico. Foi fácil tomar a decisão. Não há nenhum treinador na posição que eu me encontrava capaz de rejeitar uma oferta do Porto.

Talvez tenha sido muito cedo em minha carreira, mas foi uma experiência incrível. Pode ser que aquela temporada tenha sido a que mais aprendi e evoluí, e era muito importante seguir crescendo para as temporadas seguintes. Diria que foi o ano mais importante de minha carreira.

É muito diferente comparar o elenco de um clube como o Paços de Ferreira com o do Porto. Neste, os jogadores estão acostumados a ganhar, a jogar todas as partidas e em ambientes distintos. Tudo é diferente.

Mas aprendi a treinar um clube desta envergadura, aprendi muito com as pessoas que trabalhei, incluindo os jogadores. Foi uma temporada muito, muito importante para mim.

Fonseca admite que sua ida ao Porto aconteceu muito cedo em sua carreira. Miguel Riopa/EuroFootball/Getty Images
Fonseca admite que sua ida ao Porto aconteceu muito cedo em sua carreira. Miguel Riopa/EuroFootball/Getty Images

É raro em Portugal que um técnico volte a treinar um clube pequeno depois de trabalhar em um dos grandes. Mas quando cheguei ao Porto em 2014, busquei o prazer que tinha sentido em meu trabalho anterior. Eu sabia que o Paços era o melhor lugar para ir. Sabia que ali iria encontrar apoio e permissão para trabalhar como quisesse.

Considerava importante saber que teria total respaldo em meu próximo desafio. Ninguém fora do Paços apoiou a minha decisão, mas foi um bom movimento.

O final no Porto tinha sido difícil. As expectativas ali eram muito altas, e eu também criei essas expectativas. E quando as coisas não funcionam, é normal duvidar de si mesmo.

“APÓS TRÊS TEMPORADAS NO SHAKHTAR, A ROMA DEMONSTROU INTERESSE EM MIM. TÍNHAMOS GANHADO TUDO NA UCRÂNIA; EU QUERIA UM NOVO DESAFIO"

Essas dúvidas são parte essencial de nossa profissão. Retornar ao Paços serviu para eu ficar mais convencido do enfoque que queria dar à minha carreira. Os treinadores se questionam todos os dias, mas eu fiquei mais seguro do que nunca sobre qual deveria ser o meu enfoque.

Ir ao Braga em 2015, depois dessa temporada no Paços, foi outro passo positivo. Costumo tomar decisões levando em conta o aspecto emocional, e vi no Braga uma nova boa oportunidade. Estudei o elenco e o clube, e senti que podia criar algo, que podia ir para ganhar algo.

Fizemos uma temporada fantástica. Tivemos uma boa campanha na Taça da Liga, além de boas campanhas na Liga Europa e na Primeira Liga, e fomos campeões da Taça de Portugal. Na temporada anterior, o Braga tinha perdido a final contra o Sporting na disputa de pênaltis. Vencer o troféu tinha se tornado um sonho para o clube e para os torcedores do Braga.

Fonseca ganhou a Taça de Portugal em 2016 com o Braga, derrotando o Porto na decisão. Gualter Fatia/Getty Images
Fonseca ganhou a Taça de Portugal em 2016 com o Braga, derrotando o Porto na decisão. Gualter Fatia/Getty Images

É muito difícil para o Braga competir com Sporting, Benfica e Porto por causa da diferente capacidade de investimento entre eles. Mas conseguimos competir naquela temporada. Sempre acreditei que podíamos vencer a Taça com aquele clube, que tem uma torcida incrível. Foi uma ótima temporada, que me levou a assinar com o Shakhtar, onde conquistamos a dobradinha - liga e Copa - em cada um dos anos que passei por lá.

Após três temporadas no Shakhtar, a Roma demonstrou interesse em mim. Tínhamos vencido tudo na Ucrânia, e eu queria um novo desafio. Queria treinar em uma das principais ligas europeias. A Serie A é uma das melhores. Além disso, eu queria trabalhar na Itália e seguir a minha formação. A Roma é um clube incrível.

"COMO TREINADOR, POSSO SER OBSESSIVO COM A POSSE DE BOLA. NA ITÁLIA, APRENDI A NÃO ENTRAR EM PÂNICO QUANDO MINHA EQUIPE NÃO TEM A BOLA”

Aprendi muito durante as minhas duas temporadas ali. Taticamente, o futebol italiano é muito específico. Cada partida é diferente, e muito estratégica. É preciso estudar e trabalhar muito antes de cada jogo.

O dérbi de Roma também é incrível. O ambiente é incrível, e todos os torcedores sonham em ganhá-lo. Pode até ser mais importante ganhar da Lazio do que ganhar a Serie A. O clima que se vive antes do clássico é uma experiência incrível.

Como treinador, posso ser obsessivo com a posse de bola. Na Itália, aprendi a não entrar em pânico quando minha equipe não tem a bola. Lá, o mais importante é ganhar, e não necessariamente como se ganha. Isto foi algo diferente para mim e me fez lutar contra as ideias que tinha anteriormente. Tive que me adaptar.

Depois de uma longa trajetória, Fonseca iniciou uma nova etapa à frente do Lille, na França. Carlos Rodriguez/Getty Images - The Coaches' Voice

Ademais, tive que trabalhar durante oito meses sem um diretor esportivo, e depois lidar com a paralisação do calendário futebolístico por causa da disseminação do Covid.

Quando o Grupo Friedkin, os novos proprietários, chegaram à Roma em agosto de 2020, entendi que queriam iniciar um novo projeto com novos profissionais. E acordamos que eu sairia ao término do meu contrato, no final da temporada 2020/21.

Isso me levou de volta a Kiev e, agora, estou no Lille. Muito empolgado com um novo projeto em outro novo país.