Lembro como se ainda fosse hoje. Um aviso que me foi repetido musicalmente, quase como os cantos dos torcedores ingleses nos jogos. “Sylvio, the pace in the Premier League is very hard”. O ritmo da Premier League é muito duro', em português.
Isso era a única coisa que eu entendia em inglês nos meus primeiros momentos no Arsenal. No entanto, não me preocupava o idioma - fui a Londres sem saber uma palavra em inglês -, a comida ou o modo de vida local. Eu sabia que uma hora ou outra iria me adaptar. Era só questão de tempo.
Minha única preocupação era me adaptar ao ritmo de jogo inglês. Se queria jogar pelo Arsenal, tinha que fazê-lo o mais rápido possível.
No Corinthians, eu era o clássico lateral brasileiro. Ou seja, um jogador com muita projeção ofensiva pelo meu corredor esquerdo. Na verdade, quase todas as minhas ações nos jogos envolviam ir ao ataque, sem ter muitas exigências no trabalho defensivo. Tudo isso também condicionado pelo estilo de jogo do futebol brasileiro; um pouco mais lento que o inglês.
Estava no Corinthians fazia quatro anos e meio, além de ter tido a chance de representar a seleção em alguns jogos. Naquela época, se fosse para sair do país, a minha intenção era ir para a Itália. A maioria dos jovens jogadores brasileiros assistia com frequência aos jogos da Serie A, porque lá havia muitos de nossos jogadores como protagonistas dos principais times do calcio. No meu caso, houve a possibilidade de me transferir à Inter de Milão.
Mas aí, Arsène Wenger apareceu na história. Antes de um jogo do Corinthians, durante a semana, uma pessoa do clube me disse que o técnico do Arsenal estava em São Paulo - ia assistir a vários jogos - e que queria jantar comigo.
Depois dessa partida, fui jantar com Arsène. Nos demos bem desde o primeiro momento. Com o auxílio de um tradutor, conversamos por muito tempo; com muita abertura. Nessa primeira conversa com ele, já percebi que se tratava de uma pessoa diferente, com um alto nível de educação e na gestão de pessoas.
"Minha única preocupação era me adaptar ao ritmo de jogo inglês. Se queria jogar pelo Arsenal, tinha que fazê-lo o mais rápido possível"
"Eu gosto do jeito que você joga futebol", me disse. E me explicou porque queria me levar ao Arsenal. Até então, o Arsenal tinha uma linha defensiva composta inteiramente por jogadores da seleção inglesa. David Seaman no gol, Lee Dixon na lateral direita, Martin Keown e Tony Adams na zaga e Nigel Winterburn na lateral esquerda.
Jogadores de enorme qualidade, mas Arsène sentia que muitas equipes da Premier League, sob o clássico 4-4-2, tinham aprendido a marcar o jogo ofensivo do Arsenal. Então, ele buscava novas peças, com laterais mais ofensivos e que dessem mais amplitude ao time, como era o meu caso.
Naquele jantar, Arsène também ressaltou as minhas capacidades físicas, deixando claro que sabia certas coisas sobre mim. Por exemplo, minhas marcas de velocidade e capacidade de aceleração. Era incrível. No fim, assinei pelo Arsenal pouco depois daquele jantar, na pré-temporada de 1999. O primeiro jogador brasileiro da história do Arsenal.
Arséne me ajudou na integração ao elenco. Além, claro, de ter ajudado na adaptação a esse ritmo de jogo tão especial que tem a Premier League. Ele queria que eu não perdesse o meu espírito ofensivo, mas eu tinha que aprender a defender.
Para isso, seu auxiliar-técnico, Pat Rice, não me dava trégua nos treinamentos. Corridas para trás para defender, colocando o pé e entrando em divididas. Eu era um jogador mais leve, não era o típico defensor forte, mas aprendi muito com Pat sobre a parte defensiva.
"Os jogos em Highbury eram especialmente incríveis. Fiquei muito impressionado com o fato de o público ficar ali, tão próximo da linha lateral, grudado em você"
Depois de vários meses, comecei a jogar como titular. Tinha conseguido superar o desafio. Senti que me tornei um jogador muito mais completo graças ao trabalho dos treinadores
A partir de então, uma vez que já me sentia confortável com o ritmo de jogo, também pude desfrutar muito mais de jogar futebol na Inglaterra. Os jogos em Highbury eram especialmente incríveis. Fiquei muito impressionado com o fato de o público ficar ali, tão próximo da linha lateral, grudado em você. Quando a bola saía pelos lados do campo, os próprios torcedores te davam bola para que cobrasse o lateral rapidamente. Era formidável
Jogar em casa era muito prazeroso.
Havia ainda todos aqueles jogadores que compunham o Arsenal. Atletas de alto nível na Europa, vitoriosos e com quem tive a sorte de aprender. Sempre defendo que estar ao lado de grandes jogadores - como todos os que formavam o Arsenal - te faz melhorar.
Mesmo que você não esteja jogando, como foi o meu caso nos primeiros meses no Arsenal, você melhora porque encara cada treino como um teste, no qual precisa alcançar o nível dos companheiros. Estar à altura desses jogadores.
"Ele sabia controlar tudo que cercava o jogador, mas sem pressioná-lo. Hoje isso é mais comum, mas nos anos em que estive no Arsenal pouquíssimos técnicos faziam isso"
Também senti que meus companheiros me apoiaram muito. Fui o primeiro brasileiro a jogar pelo clube, mas nunca me vi sozinho. Isso também foi fundamental para que minha adaptação fosse muito mais rápida
E acima de tudo o que acontecia na equipe, havia Arsène. Ele não deixava escapar nenhum detalhe. Tinha tudo sob controle. Foi a primeira vez que vi um técnico decidir o que seria feito no novo centro de treinamentos, que o Arsenal estava construindo na época.
Tudo tinha suas digitais. Como os jogadores chegariam ao centro de treinamentos, onde tínhamos que colocar nossos tênis, como seria o restaurante e o que teria de comida, a troca de roupa nos vestiários... Tudo foi muito bem planejado por ele. Uma pessoa com muita experiência, que já tinha rodada o mundo todo, trabalhado em países como, por exemplo, o Japão.
Ele sabia controlar tudo que cercava o jogador, mas sem pressioná-lo. Hoje isso é mais comum, mas nos anos em que estive no Arsenal - entre 1999 e 2001 - pouquíssimos técnicos faziam isso.
"Tudo o que acabou acontecendo comigo no Arsenal, de alguma forma, Arsène me fez ver naquele jantar que tivemos no Brasil"
No entanto, o mais surpreendente para mim era a rotina que tínhamos antes das partidas. Eu nunca tinha feito nada parecido no Brasil. Naquela época, os jogos da Premier League costumavam ser cedo, entre três e cinco horas da tarde. Não havia muitos jogos de noite.
Chegávamos ao hotel onde nos concentrávamos e todo o elenco saía para dar uma volta na rua. Após a caminhada, íamos para uma grande sala do hotel e deitávamos no chão para nos alongar e fazer um pouco de meditação, com exercícios de respiração. Tudo guiado por Arsène. Após essa rotina, sua mentalidade em relação ao jogo mudava. Você ficava muito mais focado no que aconteceria horas depois.
Arsène tinha muitas virtudes, mas para mim a mais importante é que ele estava à frente de muitos treinadores no que diz respeito ao trabalho com o grupo. Sabia escolher muito bem os jogadores que iam fazer parte do elenco. Eram sempre jogadores muito bons tecnicamente.
Tudo o que acabou acontecendo comigo no Arsenal, de alguma forma, Arsène me fez ver naquele jantar que tivemos no Brasil. Como falei, ele também tinha comentado sobre meus aspectos físicos, mas isso não era o mais importante para ele
O mais importante era o meu futebol e a forma como jogava. Foi por isso que me contratou.
Isso é o que eu sigo agora como treinador. A coisa mais importante sobre um jogador de futebol é o seu jogo. Depois, a adaptação ao restante das coisas virá se você trabalhar e for constante.