VÍTOR PEREIRA
Porto, 2011-2013
Nunca mais voltei a ver aquele jogo. Só de pensar naquele momento, fico arrepiado.
Foi para viver experiências assim que me tornei treinador de futebol. É impossível descrever a emoção que invadiu o meu corpo com o gol de Kelvin. Uma sensação que carregarei para sempre, em minha memória afetiva.
Tenho a impressão de que ninguém no estádio teria feito as substituições que fiz no segundo tempo. Mas foi o meu feeling. Uma espécie de conexão com Deus. Não esperava contribuições táticas de Kelvin. Pedi apenas para que fizesse o que mais gostava: pegar a bola e partir para cima do adversário. ‘Divirta-se, jogue com confiança, jogue do seu jeito’, pedi.
A ideia era tentar arrumar um pênalti, uma falta perigosa, algo assim. Eu sentia que Kelvin podia tirar algum coelho da cartola.
Era a penúltima rodada da liga portuguesa da temporada 2012-13. Recebemos o Benfica, no estádio do Dragão, e as duas equipes seguiam invictas na competição. O problema, para nós, é que o Benfica chegou ao jogo com dois pontos a mais que o Porto. Ou seja, o empate não nos bastava.
Naquele altura, o Benfica tinha o melhor plantel do futebol português e era treinado por Jorge Jesus. Não preciso dizer que trata-se de um grande treinador. É muito difícil enfrentar as suas equipes. Aquele Benfica, de Jorge Jesus, tinha muitas soluções.
"quando se prepara uma ‘final’, como aquela contra o Benfica, o foco deve estar na parte tática do jogo"
Se o Benfica tinha alguma fragilidade, ela estava nos momentos em que a equipe priorizava defender uma vantagem no placar. Em outras palavras, quando o Benfica estava vencendo o jogo e adotava uma faceta mais defensiva, apresentava algumas vulnerabilidades.
E foi o que aconteceu naquele dia. Ao fazer substituições de caráter mais defensivo, Jorge Jesus mandou uma mensagem aos seus jogadores. ‘É hora de controlar o jogo, de compactar a equipe’.
Enquanto eles olhavam para o relógio, à espera do fim do jogo, nós seguíamos jogando. Às vezes, ouço de algumas pessoas que tivemos sorte. Costumo responder que é preciso muita sorte para perder apenas um jogo em duas temporadas. Tivemos uma derrota em 60 partidas da liga.
É preciso muito trabalho duro para se ter sorte em uma liga tão competitiva como a de Portugal. Mas entendo o argumento e admito: aquele fantástico gol do Kelvin decidiu o campeonato.
"ninguém no estádio teria feito as substituições que fiz no segundo tempo. Mas foi Uma espécie de conexão com Deus"
Mas vou te contar uma coisa. Aquele Porto me passava a sensação de estar sempre no controle das situações. Até mesmo em contextos extremos, como naqueles instantes finais do clássico no estádio do Dragão, éramos capazes de manter o foco e seguir o plano.
E quando se prepara uma ‘final’, como aquela contra o Benfica, o foco deve estar na parte tática do jogo. A inevitável carga emocional ficará mais fácil de ser administrada se o jogador souber exatamente o que precisa fazer em campo.
O treinador precisa passar uma mensagem clara sobre o que espera de cada um de seus comandados nos diferentes cenários possíveis do jogo. Se eles souberem quais são as suas tarefas, estarão mais calmos para lidar com as emoções que certamente surgirão em um contexto como aquele.
Nos dois anos em que estive à frente do Porto, conseguimos fazer grandes jogos não apenas contra o Benfica, mas também diante de Sporting e Braga. O Porto era repleto de jogadores com uma enorme maturidade tática, que tinham também muita personalidade para levar a campo o que havíamos planejado.
"Aquele Porto me passava a sensação de estar sempre no controle das situações. Até mesmo em contextos extremos"
Não importava se o jogo era dentro ou fora de casa. Sabíamos como pressionar para recuperar a bola, e sabíamos ainda mais o que fazer quando a tínhamos em nossos pés. Quando estávamos em vantagem no marcador, era praticamente impossível para o adversário conseguir a virada.
Há só uma bola em campo, e ela costumava estar sob nossa posse. Como o adversário faria os gols, então? Aquele Porto sabia identificar os momentos certos para cadenciar ou acelerar o jogo.
Mas o meu início como técnico principal do Porto não foi nada fácil. Convivi com muitas críticas e desconfiança dentro da própria comunidade portista. Antes de me tornar o treinador principal do clube, fui auxiliar de André Villas-Boas. Herdei seu cargo quando ele partiu um novo desafio, no Chelsea.
Nenhum ex-auxiliar conseguiu ter sucesso ao ganhar a oportunidade de se tornar o técnico principal do Porto. A minha história é um caso único no clube. A pressão era enorme. A minha experiência mais relevante como treinador principal, até então, havia sido no Santa Clara, na segunda divisão de Portugal.
"Eu sentia que Kelvin podia tirar algum coelho da cartola"
E os dois títulos consecutivos da liga, nos dois anos que estive no comando, fecharam de maneira perfeita o meu ciclo no Porto.
Após oito anos no clube, senti que era o momento de buscar novas experiências. No Porto, fui treinador da formação, depois auxiliar técnico, até ganhar a oportunidade de ser o treinador principal.
Era quase como se eu fosse um técnico exclusivamente do Porto, entende? Como se eu pertencesse a 'marca Porto' de treinadores. E eu queria me testar em outros lugares, experimentar novos desafios e aprender em contextos distintos.
É o que tenho feito nesses onze anos que se passaram desde o gol de Kelvin. Estou percorrendo o meu caminho, trabalhei em diferentes escolas do futebol e, hoje, sou um treinador muito mais experiente.
O que não mudou foi a minha paixão pelo jogo. Sigo trabalhando com a mesma alegria de quem comemora um gol de título no minuto 92 de um clássico.