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Imagem Íntegra

Imagem Íntegra
Carlos Rodrigues/Getty pra The Coaches' Voice
Redacción
Héctor García
Publicado el
12 de marzo 2021

Abel Xavier

Treinador de Moçambique, 2016-2019

Quando apareci como técnico, sinto que choquei muita gente.

Imagino que a surpresa dessas pessoas seja pela minha imagem irreverente. O mundo do futebol é conservador. Eu sou irreverente.

Jamais aceitei ou aceitarei deixar de lado o meu estilo em nome de uma suposta ordem. Sempre fui extremamente profissional e honesto. É só isto o que importa. Enquanto atleta, neguei propostas de muitos clubes que exigiam que eu mudasse o meu visual. O que importa o meu visual no desempenho do trabalho?

Manter-me fiel à minha imagem passou a ser uma questão de resistência. Não julgo ninguém pela imagem. Julgo pelo conteúdo.

Carlos Rodrigues/Getty pra The Coaches' Voice

Nasci em Moçambique e, ainda criança, imigrei com a família para Portugal. Viemos depois da colonização, da guerra civil que ocorreu em meu país natal. Foi um processo traumático. Metade de minha família imigrou. A outra metade permaneceu na África.

Eram meados dos anos 1970, e não foi fácil integrar-se à sociedade portuguesa. Vivíamos nos chamados bairros de lata de Lisboa, os bairros clandestinos. Eu sou um produto da rua. Tenho muito orgulho disto.

"O mundo do futebol é conservador. Eu sou irreverente"


O futebol era no bairro, na rua. E, na minha cabeça, eu era o melhor do mundo. O sonho era fazer do futebol uma forma de vida. É gratificante olhar para trás e perceber que o sonho não ficou só na cabeça.

Minha trajetória como atleta profissional durou cerca de 20 anos. É uma vida dedicada à profissão. Naturalmente, passei por diversos processos ao longo do caminho.

Fui amadurecendo como profissional e, claro, como pessoa. A cada passo, ganhava conhecimento do jogo e da vida. É uma bagagem que certamente agrega valor ao meu trabalho atual, como técnico de futebol.

A ideia de virar treinador surgiu no fim de minha carreira nos gramados. Ao receber o convite do Los Angeles Galaxy, analisei que seria o destino perfeito para encerrar o percurso dentro de campo. E, aos poucos, migrar para a nova função.

Eu sabia, porém, que o conhecimento empírico de atleta não garantia sucesso como treinador. Quantos grandes jogadores acabaram fracassando como técnicos? É preciso estudo para fazer a migração de funções.

Naquele momento, no LA Galaxy, eu já me sentia pronto, com bagagem, para começar a transição. E sentia que virar técnico era também uma forma de retribuir o que o futebol me proporcionou.

"Ao receber o convite do Los Angeles Galaxy, analisei que seria o destino perfeito para encerrar o percurso dentro de campo"


Sempre dei muito valor às referências positivas da vida. É preciso ter bons pilares para crescer, para ter empatia e se desenvolver. Meus avós e meus pais sempre foram a base do que sou. Eles lutaram para que pudesse ter as melhores condições de vida.

Depois, no futebol, convivi com líderes que tornaram-se pilares importantes para dar sequência ao meu desenvolvimento. Honestamente, aprendi com todos os técnicos que tive. De uma forma ou de outra, todos deixaram uma marca em mim.

Não seria justo definir um ou outro treinador como minha principal referência. Eu sou o produto das boas e más experiências que tive com todos eles.

Alex Livesey/Getty Images

Tive a sorte de começar a minha formação, como jogador, no Sporting. Não é por acaso que o clube revele tantos talentos. A estrutura de formação é exemplar por entender que o futebol transcende o jogo.

A educação do ser humano é a base de tudo. Um jogador mais inteligente saberá entender melhor as variáveis do jogo. Os aprendizados daqueles tempos são eternos.

No futebol profissional, tive o privilégio de conviver com pessoas fantásticas. No Estrela da Amadora, fui comandado por Manuel Fernandes, que tinha como auxiliar o José Mourinho, João Alves e Joaquim Teixeira. No Benfica, trabalhei com Jesualdo Ferreira (abaixo), um homem com uma cultura tática do jogo enorme, além do Toni (António José da Conceição Oliveira).

"Não seria justo definir um ou outro treinador como minha principal referência. Eu sou o produto das boas e más experiências que tive com todos eles"


Na seleção nacional, a minha geração passou cerca de dez anos sob os comandos das mesmas pessoas. Eu e outros tantos companheiros fomos do sub-15 ao time principal de Portugal trabalhando sempre com a mesma estrutura federativa.

Estamos a falar de Carlos Queiroz, Nelo Vingada, Jesualdo Ferreira... Estamos a falar de pessoas emblemáticas, que tinham uma forma muito própria de dar o treino, de ensinar. Não por acaso, muitos daqueles jogadores viraram técnicos de sucesso.

As minhas experiências internacionais não foram menos enriquecedoras. No Real Oviedo, fui comandado por Juan Manuel Lillo, um pensador do jogo. São muitas referências, poderia ficar citando gente o dia inteiro e ainda faltariam alguns nomes.

Trabalhei com Óscar Tabárez, um homem com uma visão enorme, com o Bobby Robson, um gentleman que sabia liderar como poucos. Na Inglaterra, citarei o Gérard Houllier (abaixo). Para mim, ele foi o grande responsável pela transformação em que o Liverpool colhe os frutos atualmente.

Phil Cole/Getty Images

Aproveito para falar da minha experiência na Inglaterra. Gostei muito de jogar no futebol inglês. Acho que minhas características casavam perfeitamente com o estilo da Premier League à época.

Por lá, vivi algo raríssimo: defender os dois rivais da cidade de Liverpool. São clubes centenários e poucos atletas defenderam tanto o Everton quanto o Liverpool. Ainda hoje, quando vou à Inglaterra, sou respeitado pelas duas torcidas.

"Gérard Houllier, para mim, foi o grande responsável pela transformação que o Liverpool colhe os frutos atualmente"


O Everton abriu-me a porta do futebol inglês. Todo jogador profissional sonha em atuar na Premier League. Naquela época, o Everton tinha uma estrutura bem britânica. Mas, infelizmente, passava por dificuldades financeiras. Em campo, o clube lutava para não ser rebaixado. É neste contexto que surge a proposta do Liverpool.

Conversei abertamente com a diretoria do Everton, que recebeu uma compensação financeira pela transferência. O Liverpool me oferecia a oportunidade de disputar a Champions League e brigar por títulos.

Clive Brunskill /Allsport

Eram novos sonhos que se tornavam realidade em minha vida. Fui honesto e correto com ambos os clubes. Por isso, minha imagem continuou íntegra com as duas cores da cidade.

Acredito que boa parte do sucesso de Jurgen Klopp vem de sua capacidade de compreender e dar valor ao legado deixado por Gérard Houllier. Foi Houllier quem começou a transformação do Liverpool, profissionalizando departamentos e internacionalizando o futebol.

"Acho que minhas características casavam perfeitamente com o estilo da Premier League à época"


Viver aquele momento do clube foi um enorme aprendizado para mim e para muitos colegas. Alguns deles também viraram treinadores. Steven Gerrard, por exemplo.

Não tenho dúvidas de que um dia ele assumirá o comando do Liverpool. Assim como eu, ele também traz um enorme legado daquele convívio com Gérard Houllier.

Shaun Botterill/Getty Images

Ao falar da Inglaterra, preciso destacar o que vivi no Middlesbrough. Eu havia sido injustamente punido por doping. O que posteriormente ficou provado, por exames feitos nos próprios laboratórios da Uefa, na Alemanha, que eu não era culpado.

Demorou um ano para a ''justiça'' acontecer. Não dá para considerar que a justiça foi feita porque eu fiquei um ano afastado dos gramados sem ter culpa do que me acusavam. O preço esportivo e os danos para a minha imagem, como homem, são irreparáveis.

"Ao falar da Inglaterra, preciso destacar o que vivi no Middlesbrough"


Se houve um momento em que pensei em desistir do futebol, foi aquele. Mas prefiro olhar para o lado bom da vida. Sou eternamente grato ao apoio que recebi do presidente do Middlesbrough, Steve Gibson (abaixo). E de toda a torcida do clube.

No jogo do meu retorno aos gramados, eram 40,000 torcedores a aplaudir o meu regresso. É um dos momentos mais marcantes da minha trajetória.

Niguel Roddis/Getty Images

Depois de tantas experiências ao redor do mundo, voltei a Portugal para iniciar minha carreira de treinador. Em 2012, aceitei o desafio de comandar o Olhanense. Clube que já havia aberto as portas para outros ex-jogadores, como Sérgio Conceição e Jorge Costa.

Eu tinha um projeto ambicioso. Não olhava exclusivamente ao futebol. O Olhanense é da região do Algarve, zona turística de Portugal. E sempre achei um desperdício que o futebol não fizesse parte da agenda turística do Algarve.

"Considero-me à altura de qualquer desafio"


Com a ajuda de um investidor, tentamos ligar os pontos: juntar as vertentes econômica e esportiva, atrair o turista para o futebol e, com isso, transformar o Olhanense numa potência nacional.

Era um projeto muito bonito. Infelizmente, a crise econômica e algumas incompatibilidades com a direção fizeram naufragar a ideia.

Carlos Rodrigues/Getty pra The Coaches' Voice

Minha mais recente experiência como técnico foi na seleção de Moçambique. Outra vez, o trabalho transcendia o futebol. Eu queria retribuir ao país tudo o que me deu. Foram três anos e meio como selecionador nacional e coordenador das seleções de formação.

Normalmente, no futebol se olha exclusivamente para os resultados em campo. São importantes, é claro. Mas eles têm um porquê. Por trás de cada vitória, tem uma metodologia de trabalho, uma organização da estrutura. Tenho orgulho de ter dado a minha contribuição para o desenvolvimento do futebol de meu país natal.

Com tantas histórias vividas, sou grato ao esporte e a todos que cruzaram o meu caminho. Considero-me à altura de qualquer desafio. Seja em clube ou seleção. Ao longo do tempo, fui preparando-me para o que viesse pela frente.

Quando a nova oportunidade aparecer, não me pegará de surpresa. Tenho minha imagem íntegra e muito conteúdo para que os sonhos cruzem as fronteiras do pensamento.