Tite
Brasil, 2016-Presente
Quando o Edu me deu a notícia, falei: "Não é possível''.
“Ah, tá de sacanagem. P...!''.
Na hora que ele sai, não tenho a dimensão da gravidade da lesão porque estou envolvido com o jogo.
O nível de concentração te faz elencar prioridades. Naquele momento, o foco estava na organização da equipe e na decisão de quem entraria no lugar do Neymar (abaixo).
Era um amistoso contra o Catar, em junho de 2019.
Quando acaba a partida e recebo a notícia, tenho essa reação de dizer que não era possível.
''Não pode ser''.
Mas era. Neymar estava fora da Copa América.
Todo mundo ficou sensibilizado com a situação. No jantar daquela noite, falei que a melhor maneira de respeitarmos o Neymar seria respeitar o nosso trabalho coletivo.
A gente tinha que seguir. Tinha que fazer grandes jogos e mostrar a força da equipe que estávamos construindo.
Força simbolizada num momento específico: quando vencemos a Argentina, vejo o Neymar entrar no vestiário para comemorar com os companheiros.
Sou reservado, deixo essas celebrações para os jogadores. Mas vi a felicidade do Neymar. E o quanto estava integrado ao espírito da equipe.
"Mostramos capacidade de neutralizar um jogador com a impressionante qualidade técnica do Messi"
Foi um momento especial, numa competição especial.
O Brasil jogaria a Copa América em casa depois da traumática eliminação da Copa do Mundo de 2014.
Havia, portanto, aspectos emocionais que geravam uma pressão ainda maior em nossa relação desempenho/resultado.
Naquela semifinal (abaixo), contra uma Argentina que contava com sua força máxima - incluindo jogadores como Lionel Messi, Lautaro Martínez e Sergio Agüero -, tivemos muita lucidez.
Fizemos um grande jogo. A criação do primeiro gol foi muito bonita. Além disso, tivemos consistência defensiva.
Mostramos capacidade de neutralizar um jogador com a impressionante qualidade técnica do Messi.
Comemoramos muito no vestiário. Eu seria insensível se, no pós-jogo, retirasse do atleta a alegria de vencer a Argentina. Não tenho este direito.
A equipe deve, sim, ter autoestima. Sentir o valor de ter passado pelo rival. Mas não pode ter soberba.
Era preciso respeitar o Peru, adversário da decisão. Não poderíamos pecar pela falta de mobilização ou concentração no trabalho.
Não adianta o técnico chegar no dia do jogo e dar uma grande palestra achando que será fator determinante. O discurso tem que ser coerente desde o início do trabalho.
Aquele clichê do ‘eu não gosto de perder’ não funciona. Quem é que gosta?
Agora, pagas o preço da tua preparação?
Tudo na vida tem bônus e ônus. A nossa preparação foi fundamental para atingirmos o objetivo.
Confesso que não pensava em dirigir a seleção brasileira até ganhar o título mundial com o Corinthians, em 2012.
Naturalmente, aquela conquista me credenciou a ser um dos candidatos a receber o convite da seleção brasileira.
“Havia aspectos emocionais que aumentavam a pressão depois da traumática eliminação de 2014”
Com o Corinthians, ganhamos também o título brasileiro de 2015, batendo todos os recordes e jogando de uma maneira muito bonita.
Afora ser uma equipe eficiente, agressiva e criativa. O trabalho no Corinthians me credenciou a ser um dos postulantes ao cargo.
O técnico que me antecedeu tinha deixado o cargo. Então, havia um lugar vago na seleção brasileira.
Lembro que viajei ao Rio de Janeiro, primeiramente para conversar e saber qual era o projeto da seleção. O Brasil vinha de uma desclassificação na fase de grupos da Copa América Centenário.
Além disso, a seleção estava na sexta posição das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018.
Depois de receber a proposta da CBF, não dei a resposta imediatamente. Na manhã do dia seguinte, ainda estava com dúvidas. À tarde, a possibilidade virou real e aceitei o convite de assumir o comando da seleção brasileira.
Terminamos as eliminatórias na primeira colocação, com 10 pontos de vantagem para o Uruguai, segundo colocado. Naquele momento, atingimos um ápice de performance.
Era um momento mágico, que foi prejudicado na fase preparatória ao Mundial com as lesões de Renato Augusto e Dani Alves.
Na estreia da Copa, a equipe ficou nervosa a partir do momento que sofreu o gol de empate no jogo contra a Suíça.
Depois, diante da Costa Rica, tivemos um volume muito grande de oportunidades. Mas faltou ser efetivo.
Teve um aspecto, porém, que me agradou muito: tivemos persistência e um nível alto de concentração para vencer por 2 a 0 com gols no fim do jogo.
Assim como fizemos na sequência, no fechamento do grupo contra a Sérvia. Estávamos num processo de evolução dentro da Copa do Mundo.
Nas oitavas de final, contra o México, fizemos outro jogo muito bom. Um dos gols é daqueles de se mostrar em palestras sobre futebol.
Então, cruzamos com a Bélgica nas quartas de final.
Alguns colocam como o melhor jogo da Copa. Não vou ter esta pretensão, mas coloco no top três da competição. Pela qualidade técnica das duas equipes, pela organização, pelo talento individual.
"Fiquei muito emocionado quando chegamos ao aeroporto no Brasil após a eliminação na Rússia"
De um lado, Neymar. Do outro, de Bruyne. Fernandinho e Coutinho. Hazard. Lukaku. Gabriel Jesus. Courtois.
Com 5 minutos de jogo, falo com o Fagner sobre o posicionamento da Bélgica. E faço um ajuste: ''Fagner, você não sai para o apoio. Fica posicional para pegar esse contra-ataque com o Hazard''.
Assim, teríamos superioridade numérica, de quatro contra três, nas ações de contra-ataque do rival.
Jogamos bem e dominamos a partida, mas sofremos dois gols no primeiro tempo e não conseguimos reverter a desvantagem.
O próprio Kevin de Bruyne, aliás, disse que o Brasil foi melhor no jogo, mas que a Bélgica acabou por ser mais efetiva. Eu só queria que os deuses do futebol permitissem que a partida continuasse por mais 30 minutos.
Não vou colocar que o Brasil passaria pela Bélgica e seria campeão. Não estou falando isso. Mas imagino o que poderia acontecer com mais 30 minutos de jogo.
“Vou me permitir fazer o trabalho todo, um ciclo completo de quatro anos”
Fiquei muito emocionado quando chegamos ao aeroporto no Brasil após a eliminação na Rússia. No desembarque, as pessoas começaram a nos aplaudir. Aquilo, de certa forma, massageou a dor que sentíamos.
Aquele contato com o torcedor no retorno ao país e o apoio de minha família foram cruciais para a minha decisão de permanecer no cargo.
Cerca de uma semana após a queda na Copa, concluí: ''Vou me permitir fazer o trabalho todo, um ciclo completo de quatro anos. E não parcial, como tinha sido anteriormente''.
A próxima competição foi justamente a Copa América de 2019. Em casa. O adversário da final, o Peru, já havíamos enfrentado - e vencido por 5 a 0 - na fase de grupos.
A expectativa externa era de que iríamos repetir o placar. Que venceríamos com facilidade. Mas o Peru não era o mesmo. Tinha eliminado o Chile, que havia vencido as duas edições anteriores, vencendo por 3 a 0 na semifinal. Chegava à decisão com um nível de confiança muito mais alto. E com uma equipe sólida.
Fizemos 1 a 0 aos 15 minutos, mas sofremos o empate no fim do primeiro tempo. Imediatamente após o gol do Peru, fizemos o 2 a 1. E admito que aquela reação instantânea me surpreendeu.
“Quando Richarlison fez o 3 a 1, olhei para o céu”
Uso a analogia do boxe para que as pessoas compreendam. Quando sofremos um gol, é parecido com levar um direto no boxe. Você fica um pouco tonto. E não vai agredir o adversário imediatamente.
Você espera retomar a confiança. É natural, é humano. Claro que o ideal é superar e transitar rapidamente para o próximo momento, para a próxima ação. Tomou o gol, tomou o gol. Mas não é simples. E a equipe me surpreendeu pela capacidade de absorver tão rapidamente aquele direto. Pensei que essas ações pudessem ser um pouco mais à frente. Mas foram logo depois que tomamos o gol de empate.
Nosso segundo gol não nasce de bola parada ou lançamento longo. A equipe trabalha a bola, constrói, retoma e faz o gol (abaixo). Admito que o nível de consciência do time me surpreendeu.
Há momentos que são marcantes, que você sente que o título está consolidado. O gol de pênalti do Richarlison, o 3 a 1, foi um deles. Aí, olhei para o céu.
As manifestações no banco, as manifestações dos atletas, comemorando. Quando vi, estava um batalhão de comissão técnica e atletas correndo e quase fui levado junto com eles. Naquele momento, me senti feliz. Orgulhoso. Grato.
“A emoção de comemorar o título com a torcida é difícil de se descrever”
Eu não sei qual é o peso histórico do título para a seleção, que sempre foi vitoriosa. Em 1970, o Brasil tinha um time extraordinário, a maior seleção do mundo. Às vezes, as pessoas me perguntam quando saio do país: ''Cara, como é possível? A pressão que você sofre é incrível''. Eu digo: ''Sim, mas também entendo que a minha maior pressão é a minha conduta moral. É a busca pelo aperfeiçoamento técnico''.
Esta é a cobrança que tenho para comigo. E a partir daí, busco representar aqueles que se identificam comigo. Para com eles, não há nenhuma obrigação. Há prazer e satisfação de representá-los.
Um dia, estava caminhando com a minha esposa e disse: ''Poxa, eu queria ter vencido a Copa do Mundo em 2018. Aí, eu parava. Não teria mais o que alcançar. Todas as etapas estariam construídas''.
Como não aconteceu, pude viver aquilo na Copa América. A final da competição foi minha primeira partida como técnico da seleção no Maracanã. Algo emblemático.
Após o apito final, os 70 mil torcedores permaneceram conosco no estádio, celebrando. Isso a gente sente mais do que consegue descrever. O torcedor faz parte da conquista.
Eu ganhei praticamente tudo o que um profissional pode ter na carreira.
Quando disse aquilo à minha esposa, ela olhou para mim e respondeu: ''Talvez não fosse a hora de parar. Ainda tem muito trabalho para conseguir se aposentar em 2022’.
Tomara que ela tenha razão.