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Momentos Mágicos

Felipe Rocha
Momentos Mágicos
Robert Cianflone/Getty Images
Redacción
Felipe Rocha
Publicado el
febrero 1 2022

juliano belletti

Auxiliar técnico do Cruzeiro, 2021-2022

Aquele jogo em Paris mora em meus pensamentos. 

Aos 34 minutos do segundo tempo, fiz o passe para o Henrik Larsson, que controlou a bola rumo à bandeirinha de escanteio. Seu marcador, Sol Campbell, o acompanhou. Assim como outros defensores do Arsenal, que faziam a cobertura. 

Abriu-se, então, uma diagonal em direção ao gol. Havia sobrado um espaço enorme e, naquele instante, acontece uma das mágicas do futebol: dois atletas pensarem exatamente a mesma coisa, na mesma hora. 

Eu corro para ocupar o espaço vazio, imaginando que o Larsson terá a ideia de controlar a bola e devolvê-la para mim. É o que acontece. Estava chovendo muito instante da partida. A bola ganhou muita velocidade mas, mesmo assim, pude dominá-la com o pé esquerdo. 

Belletti marcou o gol decisivo na final da Champions League de 2006.  Laurence Griffiths/Getty Images

Se não estivesse firme no lance, teria perdido a passada. A bola vai um pouquinho para frente. Estava praticamente sem ângulo e com Mathieu Flamini na minha cola, pronto para dar o carrinho. Não havia outra alternativa: eu tinha que chutar a gol. 

Com a força do chute, fui ao chão logo após a conclusão. Ao perceber que a bola entrou, me levantei para comemorar. Mas não deu. A emoção tomou conta de mim. Incrédulo, levei as mãos ao rosto e desabei novamente, tentando assimilar tudo aquilo. De repente, vem aquela montanha humana para me abraçar. Foram momentos inesquecíveis.

Disputei seis edições de Champions League e aquele gol na final de 2006, vencida pelo Barcelona por 2 a 1 contra o Arsenal, foi o meu único na competição. Pelo Barça, tive o privilégio de jogar três temporadas. Aquele foi meu único gol oficial pelo clube. 

"Passei a ser o cara que marcou o gol do título. Esperavam mais de mim" 

Como estava 1 a 0 para o Arsenal e tínhamos um jogador a mais em campo, não me passou pela cabeça que eu entraria na partida. Afinal, até os 15 minutos do segundo tempo, a comissão técnica não havia pedido para eu iniciar o trabalho de aquecimento. 

Só que vem uma jogada e o Oleguer Presas, que estava atuando como lateral-direito, recebe o cartão amarelo. Foi o que mudou o planejamento do Rijkaard. Entrei quando faltavam cerca de 20 minutos para o fim da partida. A instrução do comandante foi clara: 'Seja ofensivo, precisamos atacar pelos lados'. 

Durante aquela temporada, houve muitos momentos em que fiquei no banco de reservas. E, por muitas vezes, questionei o treinador se eu deveria ser mais defensivo quando a minha oportunidade aparecesse. 

Jogadores do Barcelona comemoram o gol de Belletti no gramado do estádio Saint-Denis. Laurence Griffiths/Getty Images

'Não! Quero que jogue do seu jeito, quero que seja um lateral-direito brasileiro', disse Rijkaard. Eu sempre assumi as minhas responsabilidades defensivas mas, ao mesmo tempo, também gostava de atacar. Gostava de ser uma 'arma secreta' no ataque. 

Naquele instante da substituição, lembrei daqueles papos. O espírito do lateral brasileiro, que me pedia Rijkaard, me levou ao gol. 

A chegada à Catalunha, no dia seguinte, não deixou dúvidas da importância daquela conquista. A reação dos torcedores ao me ver foi algo inesquecível. Eu nunca tinha sido protagonista de nada.

"jogar no chelsea É o tipo de coisa que você não pode deixar passar"

Estava prestes a completar 30 anos e jamais havia experimentado algo parecido. Minha carreira sempre foi jogar pela equipe, correr pelo melhor jogador do meu time. De repente, me vi no meio da multidão, como se fosse o craque do Barcelona. 

Aquele gol me permitiu viver algo inimaginável até então. 

Passada a comemoração, me dei conta das transformações que o gol provocaria em minha carreira. Não em minha forma de encarar o trabalho, isso não se alterou. A mudança ocorreu no olhar das pessoas, torcedores e jornalistas. Passei a ser o cara que marcou o gol do título. Esperavam mais de mim. 

As ruas de Barcelona ficaram cheias para celebrar a conquista da Champions League, sob os comandos de Frank Rijkaard. Getty Images

A temporada seguinte acabou por ser a minha última no Barcelona. Eu havia acabado de renovar contrato e achei que fosse permanecer no clube por muitos anos. Mas já não estava tendo tantos minutos quanto gostaria em campo. Gianluca Zambrotta era o titular e Oleguer, vez ou outra, ainda fazia a função de lateral. 

Mas na pré-temporada de 2007-08, tive destaque e estava perto de recuperar meu espaço na equipe. 

De repente, de um dia para o outro, fiquei sabendo do interesse do Chelsea. José Mourinho queria contar comigo. É o tipo de coisa que você não pode deixar passar. Não coloquei nenhum empecilho, era um pacote irrecusável: jogar a Premier League, morar em Londres, trabalhar com o Mourinho e vestir a camisa do Chelsea. 

"Liderar é um trabalho árduo. Mas Ancelotti fazia parecer fácil"

Provou-se uma decisão acertada, fui muito feliz na Inglaterra. O Chelsea tinha uma grande equipe e pude ter uma passagem vitoriosa pelo clube. Além de ter trabalhado com grandes treinadores nos anos que vesti a famosa camisa azul. 

O Mourinho praticamente não repetia treinamentos. Era um cara muito criativo na arte de motivar os jogadores. Depois dele, veio o Avram Grant, um comandante mais calado e observador. Na temporada seguinte, Luiz Felipe Scolari chegou com sua maneira de estimular os jogadores. 

Todos esses treinadores tinham uma capacidade técnica fora do comum. 

Belletti teve cinco treinadores em sua etapa no Chelsea, entre eles seu compatriota Luiz Felipe Scolari. Getty Images

Outro que me surpreendeu positivamente foi o Guus Hiddink. A maneira assertiva como fala e cobra o atleta é fascinante. Ele sabe convencer o grupo de suas ideias. Estamos falando de um recorte do futebol onde o nível é altíssimo. Então, a parte técnica, o jogador já tem. Muitas vezes, é mais importante fazer com que o atleta se mantenha focado nos treinamentos, motivado em seguir alcançando novas metas. 

Em minha última temporada em Londres, trabalhei com Carlo Ancelotti. Foi o técnico com quem mais tempo convivi no Chelsea. Era incrível a sua capacidade de criar novos exercícios táticos e administrar o elenco para que todos seguissem integrados, sentindo-se parte importante do projeto. 

Liderar é um trabalho árduo. Mas Ancelotti fazia parecer fácil. 

"Belletti, você está perdendo tempo. Você foi um dos jogadores com mais capacidade tática que tive"

Aprendi muito em meus três anos no futebol inglês. Tive uma carreira extraordinária, conquistei muito mais do que podia imaginar. Além de ter convivido com treinadores e jogadores fantásticos. 

Citei alguns dos treinadores com quem trabalhei na Europa, mas não posso esquecer dos grandes líderes que tive no Brasil: Carlos Alberto Parreira, Mário Jorge Zagallo, Levir Culpi, Ênio Andrade, Muricy Ramalho, Carlos Alberto Silva, entre tantos outros. 

O curioso é que durante a minha vida como atleta profissional, não passava pela minha cabeça a possibilidade de me tornar técnico. Parei de jogar em 2011 e levei cerca de oito anos para tomar a decisão. 

Decisão que teve uma grande influência de Carlo Ancelotti. Em 2019, tivemos um encontro casual nos Estados Unidos. Ele era o técnico do Napoli e eu, embaixador do Barcelona. As equipes se enfrentaram num amistoso de pré-temporada em Miami. Após o jogo, fui ao vestiário para cumprimentá-lo. 

Ancelotti foi a principal influência de Belletti na decisão de virar treinador. Phil Cole/Getty Images

Ancelotti olhou para mim e perguntou se eu já tinha virado técnico. Neguei, mas nem consegui concluir as minhas explicações: 'Belletti, você está perdendo tempo. Você foi um dos jogadores com mais capacidade tática que tive'. Aquelas palavras me iluminaram. Foi um outro momento decisivo em minha carreira. Saí do vestiário decidido em ser treinador. 

Bem antes daquela conversa com Ancelotti, eu já havia tirado a licença A da CBF para ser treinador. Mas fiz o curso com o intuito de me tornar um melhor comentarista esportivo, função que desempenhei por quatro anos. 

"Foi um grande aprendizado trabalhar com profissionais do gabarito de Felipe Conceição, Mozart e Vanderlei Luxemburgo"

Ao fazer análises táticas na televisão, percebi que tinha muita paixão em interpretar o jogo. E ouvi de muita gente que eu conseguia transmitir as ideias com clareza. Meu pai, orgulhoso de minha trajetória no futebol, sempre me dizia: 'Você precisa dar um jeito de transmitir o conhecimento que tem'.

Busquei várias formas de fazê-lo nesse longo hiato entre a aposentadoria dos gramados e a decisão de virar técnico. Uma delas foi a criação da Arena Belletti, uma rede de franquias de um complexo esportivo voltado para o futebol. 

O projeto inclui a 'Belletti Soccer Academy', com categorias do sub-5 ao sub-17, e o 'Evolution', para adultos. Idealizei o programa de treinos para as crianças, cujo foco principal, na verdade, são os professores. A ideia é fazer o educador entender que mais importante que os exercícios em si, é a forma de aplicá-los e ensiná-los às diferentes faixas etárias. 

Belletti começou sua carreira como técnico.

Na academia de futebol para os maiores de idade, os treinos são basicamente idênticos aos que vivi no Barcelona e no Chelsea.    

Recentemente, tive o prazer de retornar ao clube que me revelou como jogador. Primeiro, o Cruzeiro me convidou para ser diretor de negócios internacionais. Depois, me propuseram uma mudança de cargo: eu passaria a ser auxiliar-técnico fixo do clube.

Aceitei na hora.

"Hoje, como técnico, não sonho em repetir emoções passadas. O que faço é trabalhar duro para ter a oportunidade de comandar grandes clubes e jogadores"

Afinal, estava com saudades de pisar novamente no gramado. Foi um grande aprendizado trabalhar com profissionais do gabarito de Felipe Conceição, Mozart e Vanderlei Luxemburgo

Sob os comandos de Luxemburgo, aconteceu algo inusitado: houve um jogo em que ele e seu auxiliar imediato, Maurício Copertino, foram expulsos. Portanto, eu era o próximo da fila e tive a chance de comandar a equipe na partida seguinte, contra o Vasco da Gama, em São Januário. 

Claro que todo o planejamento do jogo, estratégia, sistema, tudo foi definido pelo Vanderlei. Mas a sensação de estar no banco foi a comprovação do que eu quero para mim. Estive à vontade, convicto de que posso contribuir à beira do gramado. 

Até aqui, consegui ir passo a passo, como o planejado. Estudei, conversei com muitos técnicos e fui auxiliar. Agora, estou pronto para o próximo degrau, o de ser treinador principal de um clube. Não sei se será no Brasil ou no exterior. Mas é o próximo passo dessa longa caminhada.

Belletti dirige no Brasil uma escola de futebol com a sua assinatura.

Não abro mão do compromisso e do respeito. A partir disso, o treinador adapta suas ideias de trabalho ao grupo que tem em mãos. Não acredito que a mesma forma de liderar funcione em times diferentes. 

Adaptar-se ao contexto é tão importante quanto ter convicções. O bom técnico cria ferramentas e estratégias para tirar proveito do que tem à disposição. Sempre em busca das vitórias.

Nunca havia sonhado em viver uma noite como aquela em Paris. Meus sonhos no futebol se resumiam em jogar em grandes clubes, ao lado de grandes jogadores. Só assim, uma noite daquelas poderia virar realidade. 

Hoje, como técnico, não sonho em repetir emoções passadas. O que faço é trabalhar duro para ter a oportunidade de comandar grandes clubes e jogadores.

Assim, quem sabe um dia eu não possa viver um novo momento decisivo que dure eternamente?