Thiago Alcântara
Barcelona, 2008-2013; Bayern, 2013-2020; Liverpool, 2020-2024
Para mim, foi muito importante crescer em um ambiente esportivo.
Meu irmão Rafinha e eu tivemos a sorte de conhecer o esporte através da minha mãe, que jogava vôlei, e do meu pai, Mazinho. Com ele ainda em atividade, entramos em contato com o que era ser jogador de futebol.
Tivemos a sorte de poder assistir aos treinos, entrar nos vestiários e normalizar o dia a dia de um atleta profissional. Naquela época, a minha curiosidade ainda não era sobre a parte tática, mas sobre o comportamento do jogador de futebol e seu dia a dia.

Entrar em um vestiário desde pequeno ajuda a quebrar certos mitos sobre o que acontece dentro do futebol, porque você as situações e percebe as relações humanas. Evidentemente, os jogadores da época do meu pai não eram como os de hoje. Além disso, quando criança você não participa das conversas da mesma forma que faz quando é adolescente ou adulto, quando já se relaciona com companheiros e treinadores. Portanto, ter conhecido esses ambientes ajudou com que eu me sentisse confortável nesse contexto. Mas, depois, você tem que saber se virar sozinho.
Também tive a sorte de crescer com um irmão quase da mesma idade, e que adorava futebol. Éramos super competitivos um com o outro, mas de uma forma saudável. Competíamos jogando. Não falávamos de futebol, não avaliávamos como tínhamos jogado, simplesmente jogávamos.
"Meu irmão Rafinha e eu tivemos a sorte de conhecer o esporte através da minha mãe, que jogava vôlei, e do meu pai, Mazinho"
Éramos de falar pouco, observar muito e agir. Prestar muita atenção em tudo foi o que nos fez crescer dentro daquele contexto. Algo que poderíamos transferir para toda criança, em qualquer área da vida. E, assim, fui criado em um ambiente propício para me desenvolver como me desenvolvi.
Para nós, que temos raízes brasileiras, o futsal nos deu muito mais agilidade com a bola, nos fez pensar com rapidez e reagir muito rapidamente às ações. Mas no futsal também há um rigor tático importante que você pode aplicar ao futebol.

Às vezes, no campo, já me vi em situações em que treinadores importantes falaram: “Não pise na bola!”.
Está bem, mas eu vou pisar.
“Não drible por causa disso, não domine com a parte externa!”.
Está bem, mas eu vou fazer.
Tudo faz parte da natureza e da magia de um esporte em que, mesmo jogando mal, você pode ganhar. O futebol é o único esporte em que isso acontece. É a magia do impensável: no futebol, tudo pode acontecer.
"Para nós, que temos raízes brasileiras, o futsal nos deu muito mais agilidade com a bola"
Meu primeiro treinador, meu pai, era um treinador invisível. Ele treinava meu irmão e eu sem precisar falar muito, simplesmente com suas próprias ações. Acredito que esse foi o fator número um para que tanto meu irmão quanto eu acabássemos nos tornando jogadores. Depois, à medida que você cresce, você tem treinadores que causam impacto no seu crescimento como jogador de futebol, como García Pimienta, na época do Barça. Em Vigo, quando meu pai jogava no Celta, também me ajudaram a me desenvolver no aspecto mais físico do futebol.

Então, entrar em La Masia te lhe as ferramentas necessárias para compreender como funciona o futebol do Barça e como eles querem que se jogue. Mas, o mais importante são os valores humanos. O Barça te ajuda: a disciplina que gera nas suas equipes de futebol faz com que você também gere disciplina em seu dia a dia. Nisso, a La Masia e os seus jogadores andam de mãos dadas. Os jogadores são feitos por e para o time principal do Barça.
Foi algo único poder estar no vestiário do time principal do Barcelona e jogar partidas importantes. Fazer parte de um elenco que, se você fechasse os olhos durante uma posse de bola, a bola soava perfeitamente.
"Meu primeiro treinador, meu pai, era um treinador invisível. Ele treinava meu irmão e eu sem precisar falar muito, simplesmente com suas próprias ações"
Nós, jogadores que chegamos a este nível, sempre desejamos ser os melhores em nossa área. Mas, no Barcelona, encontrei uma equipe que já contava com os melhores, talvez da história, em suas posições. Portanto, as metas mudam um pouco por lá, porque o teto é muito alto para ser alcançado logo de cara. No Barça, você se transforma como jogador, aprende muito e, depois, se acabar saindo do clube, estará muito mais avançado do que os outros. Foi uma alegria e uma experiência única jogar com meio-campistas como Sergio Busquets, Xavi, Andrés Iniesta…

Depois, a liga alemã me mostrou que no futebol não podemos ser sempre dominantes. Temos que entender que, muitas vezes, não controlaremos as coisas que acontecem, e que tudo bem, desde que sejamos muito bons no que dominamos. O futebol alemão te expõe a um jogo ofensivo de transições, no qual, às vezes, você tem que aceitar que não pode se proteger totalmente. Mas assim que tiver a chance de causar danos, você tem de aproveitá-la.
"Mas, no Barcelona, encontrei uma equipe que já contava com os melhores, talvez da história, em suas posições"
Quando cheguei à Alemanha, o Bayern de Munique ainda era muito dominante na Bundesliga. Era uma liga pouco explorada. Eu percebia que havia pontos cegos nos adversários: com a bola, podíamos ser dominantes, mas, se acelerássemos o jogo nas transições, eles cortavam mais facilmente. Aos poucos, com o surgimento de uma geração muito boa de treinadores alemães, o futebol da Bundesliga, em geral, foi aprimorando essa parte tática e se equiparando ao futebol que praticávamos no Bayern. Eu incentivo os jovens a se desenvolverem na Bundesliga, porque ela permite que você desenvolva todas as fases do jogo.

A minha etapa no Liverpool englobou o que é a minha perspectiva em relação a um clube e o que sempre me encantou: a sensação de disputar todos os títulos e ser dominante em campo, mas mostrando que você é um clube lutador, que todos os dias é preciso lutar por um objetivo. Você tinha que se esforçar. No Liverpool, encontrei essa combinação entre ser e se sentir dominante e trabalhar para isso.
O futebol inglês te ensina que, nos duelos, você precisa ser melhor do que o adversário, proporcionando esse crescimento extra semana após semana. Por outro lado, o Barça e o Bayern têm abordagens diferentes. O Barcelona sempre tem aquele estilo de jogo mais bonito, e não há nada no futebol alemão que se compare ao Bayern, que era muito dominante.
"O futebol alemão te expõe a um jogo ofensivo de transições, no qual, às vezes, você tem que aceitar que não pode se proteger totalmente"
Essa parte mais intensa do futebol inglês se assemelha muito ao futebol sul-americano, e em Liverpool passamos por uma fase muito bonita de adaptação, aprendizado e crescimento.

Foi lá que conheci Jürgen Klopp, uma pessoa que transborda energia no dia a dia. Trabalhar com ele me deu a sorte de estar com um treinador capaz de adaptar todas as situações possíveis, boas e não tão boas, em favor da equipe. Com Klopp, não existem situações ruins, mas momentos que precisam ser canalizados para um caminho favorável ao seu grupo de trabalho. E ele conseguia isso através de energia, calma ou risadas em momentos que ninguém esperava que fossem engraçados. Ele fazia com que todos tivessem esse fluxo de energia, esse rumo, e que todos se dirigissem a ele.
"O futebol inglês te ensina que, nos duelos, você precisa ser melhor do que o adversário, proporcionando esse crescimento extra semana após semana"
Além da intensidade nos treinos, o melhor que eu poderia transmitir do Jürgen para a minha equipe é a ideia de que, mesmo que você queira se concentrar apenas em trabalhar uma jogada específica, elas continuam e permanecem vivas. Você não pode fazer um exercício de finalização desconsiderando a possibilidade de haver um rebote ou de a bola ser roubada em um determinado momento e ser necessário fazer uma transição. O que levo do aprendizado com Jürgen é essa intensidade que você ganha ao correr, passar e estar bem posicionado.

São conceitos muito semelhantes aos de Hansi Flick. Hansi é a minha referência como treinador, porque é a pessoa em quem encontrei tanto o lado humano quanto a parte mais técnica. Afinal, o treinador lida com pessoas e atletas. É preciso entendê-los, mas ao mesmo tempo dar-lhes ferramentas para que possam se desenvolver e continuar crescendo, potencializando essa ambição dos jovens ou das pessoas competitivas para que o grupo continue funcionando. Com Flick, você aprende a dar o máximo e também a não dar importância a muitas coisas que acontecem ao redor do clube, como no Barcelona, porque, caso contrário, você tira energia do grupo. Para ele, o mais importante é controlar tudo o que acontece dentro, blindando o elenco do que vem de fora.
"Com Klopp, não existem situações ruins, mas momentos que precisam ser canalizados para um caminho favorável ao seu grupo de trabalho".
Eu poderia fazer uma longa lista de todos os treinadores que foram benéficos ao longo da minha vida: Guardiola, Hansi Flick, Luis Enrique, Ancelotti, Klopp, Jupp Heynckes... Mas esse benefício se manifestou, sobretudo, na fase final da minha carreira. Não sei se porque Klopp já via meus cabelos grisalhos ou porque usávamos parte do tempo que tínhamos em campo para conversar e liderar. Foi ele quem me disse que eu seria treinador.

Quando você chega a uma certa idade e observa quais padrões se repetem em uma partida, você os usa para tomar atalhos com o objetivo de gerar essa superioridade e benefício no jogo. O que acontece em campo não depende de você, depende de uma equipe. Você passa essas informações aos jovens para que possam ter tranquilidade na hora de fazer as coisas do jeito deles. Você fornece aos jovens mais ferramentas do que eles têm. E, assim, foi crescendo em mim essa curiosidade de descobrir como poderia ajudar, ainda sendo jogador, outros companheiros, outros atletas.
Mas você ainda não dá um nome para isso.
Aos poucos, essa parte didática vai se incorporando aos seus hábitos. Você diz: “Certo, tenho que dar o meu melhor neste treino, neste jogo, mas também tenho tempo e quero poder ajudar outra pessoa, outro companheiro, a ter um bom desempenho também”. Isso vai crescendo e, aos poucos, quando o jogador de futebol desaparece, você pensa em como continuar usando esse conhecimento do jogo com outras pessoas. Essa é a transição natural que alguns de nós vivemos.
"Hansi é a minha referência como treinador, porque é a pessoa em quem encontrei tanto o lado humano quanto a parte mais técnica"
A experiência durante a sua carreira como jogador lhe dá um conhecimento baseado na tentativa e erro. Aprende as coisas que funcionam para você e sabe o que vai funcionar para o grupo, mas não é a mesma fórmula para todos. Nesse caso, o mais importante é psicológico: identificar o que é mais conveniente para uma pessoa ou grupo de pessoas e gerar harmonia.
Depois de tanto tempo lutando, primeiro para ser jogador de futebol e depois para ser o jogador que eu queria ser, o passo mais difícil foi aceitar que isso estava acabando. Não pelo que viria depois, mas por encerrar algo que você ama devido a questões que vão além do que pode controlar. É difícil, mas é preciso encontrar essa paz consigo mesmo, essa aceitação e esse orgulho pela carreira que teve.

Quando a carreira esportiva chega ao fim, é necessário desacelerar, pois isso dá perspectiva para fazer uma revisão de tudo o que você construiu. É conjugar tudo o que fez para poder seguir em frente. Isso não significa que tenha que carregar toda a sua vida com aquela mochila na qual você foi colocando coisas durante todos esses anos. Você só precisa pegar essa mochila, abri-la e ver o que há dentro. E a viagem continuará com as coisas que você quiser colocar nela. Para continuar aprendendo e evoluindo, às vezes você precisa mudar de ritmo e tomar outro rumo.
"Depois de tanto tempo lutando, primeiro para ser jogador de futebol e depois para ser o jogador que eu queria ser, o passo mais difícil foi aceitar que isso estava acabando"
Há pouco menos de um ano, Jordi Alba, Oscar Pierre (cofundador e diretor geral da empresa Glovo) e eu decidimos tentar ajudar o Centro de Esportes El Hospitalet, um clube catalão, criando um time de futebol no qual nós três gostaríamos de estar. Por meio de um clube histórico como o Hospitalet, estamos conseguindo criar essa intenção de crescimento, unindo o que eles sempre foram com o que nós esperamos que seja um clube de futebol.
Coisas mágicas estão sendo criadas. Estamos vendo uma população dedicada indo a um estádio de 6.000 lugares com vontade de ver o time subir para divisões superiores. Queremos também contribuir com qualidade e aprendizado para sua base. Vemos que no futebol de hoje se busca sempre o benefício econômico e nós, neste caso, queremos explorar essa parte social para poder gerar um impacto dentro da cidade, incluindo seu povo.

Além disso, minha família fundou em 2019 a Alcantara Family Foundation para utilizar o esporte como meio de ajuda e inclusão social. E tem sido muito bonito, muito transformador. Ao longo de nossas vidas, já tínhamos feito coisas por conta própria, inspirados por nossos pais, só que desta vez decidimos unir forças para poder iniciar nossos próprios projetos e também poder contribuir para que outras iniciativas se desenvolvam através do esporte.
O que mais ouço de profissionais de diferentes esportes é que você precisa ter tempo e liberdade antes de poder se dedicar de corpo e alma ao que deseja fazer. Acredito que não existem meias medidas, ou não se envolver. Você precisa dedicar parte da sua vida à tarefa ou missão que lhe foi dada. Mas é preciso dar tempo a si mesmo antes de se dedicar totalmente a isso.
"Minha família fundou em 2019 a Alcantara Family Foundation para utilizar o esporte como meio de ajuda e inclusão social. E tem sido muito bonito, muito transformador"
Minha experiência na equipe técnica do Barça no verão de 2024 foi maravilhosa. Chegou a um ponto em que o jogo ainda estava fresco na minha cabeça e nas minhas pernas, mas eu não conseguia competir no mais alto nível. Eu sabia que a criança que havia dentro de mim e me fazia jogar futebol havia se apagado. Para poder ajudar outras pessoas, meu eu adulto precisava contribuir com consciência. Usei-a para transmitir uma ideia clara de jogo, uma filosofia e um comportamento de grupo. Tenho muito orgulho dessa etapa que vivemos em 2024 e, acima de tudo, tenho orgulho do que todo o grupo conquistou na temporada passada e do que está fazendo agora.

Estou me formando para poder ser treinador, mas me encanta poder entender e aprender de outras áreas que fazem parte de um grupo de trabalho, como, por exemplo, sentar à mesa e poder conversar com os fisioterapeutas ou preparadores sobre o que estão fazendo.
Até que eu veja que tenho essa preparação em tudo, não poderei dizer que quero me dedicar exatamente a isso. No momento, quero conhecer tudo para poder desenvolver o que descrevo.
Se eu der o passo para treinar, é porque talvez meu talento não fosse apenas para ser jogador de futebol, mas para ajudar os outros. Sou muito didático, quero ajudar muito e posso direcionar meu talento para gerar essa transcendência na vida de outros atletas.
A bola sempre estará presente em cada dia da minha vida. Só que agora será diferente. É dar a essa bola um lugar dentro de um time de futebol ou dentro do futebol em geral.
Eu realizei o sonho que tive toda a minha vida, que era ser jogador de futebol.
Mas meu outro sonho continua: quero ajudar as pessoas.

Thiago Alcântara