PEP LIJNDERS
Auxiliar técnico do Liverpool, 2018-Presente
“Você não regressará ao Porto. Vai ligar para eles e retornar ao Liverpool agora".
Corria o ano de 2014, eu estava no País de Gales para fazer uma apresentação referente à minha licença A da UEFA. Antes de viajar, tinham me falado que o cargo de técnico da equipe sub-17 do Liverpool estava vago. Eu havia mandado o meu currículo, e Alex Inglethorpe, diretor da base do Liverpool, e Michael Beale tinham confirmado o recebimento. Eles sabiam quem eu era, o que me pareceu uma boa notícia, e disseram que mandariam duas pessoas ao País de Gales para conversar comigo.
Fiz a minha apresentação com total dedicação, como sempre. Depois, me reuni com eles e, instantes após a conversa, eu estava num ônibus ao lado de Michael Beale em direção a Liverpool.
Fiquei hospedado no hotel Hope Street. Na manhã seguinte, o sol brilhava enquanto eu tomava um café na parte exterior do hotel. Liguei para a minha esposa. Se aquilo estava acontecendo de verdade, pensei, o melhor seria conversar com ela. A mudança para um clube da dimensão do Liverpool, com toda sua história e tradição, era algo que jamais havia sonhado.
Quando você chega à Inglaterra e vê os jogos, os estádios, os gramados e ouve as narrações das partidas, sente que é algo diferente de tudo o que há no restante da Europa.
A mudança para Liverpool também representava uma oportunidade de comandar uma única equipe. Eu levava sete anos no Porto, onde trabalhava não apenas com o time principal e a equipe B, como também atuava com jogadores da base, de forma individual.
Além de ter minha própria equipe na base. Em minha primeira temporada, não perdemos um jogo sequer, conquistando o título com uma semana de antecedência. Na última rodada, enfrentamos o Boavista e decidi mesclar um pouco a equipe, colocando alguns jogadores mais jovens. O jogo terminou 1 a 1, e voltamos de ônibus ao clube. Quando chegamos, o diretor da formação e o vice-presidente estavam à minha espera.
"Pep, temos que conversar”, disseram. "No Porto, jogamos cada partida para ganhar. Não vamos mudar a equipe dessa maneira. Jogamos para ganhar".
Minha primeira temporada e estou na sala do vice-presidente! Mas acho que queriam se assegurar que eu entendia a cultura do clube. Há um mote que define o Porto: 'amamos quem odeia perder’.
“TINHA APENAS 24 ANOS QUANDO CHEGUEI A PORTUGAL, E NÃO FALAVA UMA SÓ PALAVRA EM PORTUGUÊS"
O clube já ganhava muito, mas queria subir ainda mais de patamar. Entre 2006 e 2011, passaram cinco anos reorganizando e reestruturando o centro de formação de atletas, a primeira equipe e o departamento de scouting. Esta foi uma das razões que me levaram ao Porto.
Tento explicar: o departamento de scouting do Porto é um dos melhores do mundo. Não por acaso, o Liverpool contratou Luis Díaz, por exemplo. Mas o centro de formação tem que competir com o departamento dos olheiros. Se o clube tem um jovem com mais qualidade que um atleta sugerido pelo olheiro, priorizará, claro, seu próprio jogador.
Mas o que acontece se o atleta da base não é tão bom quanto o indicado pelo olheiro? Como foi o caso, por exemplo, de Luis Díaz. Ele deve ter jogado uns seis, sete, oito, nove, talvez dez anos, em campos horrorosos e sempre sendo o melhor de todos. Assim, acabou por desenvolver uma habilidade individual do mais alto nível.
É esse tipo de competição que a sua formação precisa encarar. Afinal, os treinadores da equipe principal só irão subir atletas que ajudem a ganhar jogos. No Porto, se você perde, está fora.
Portanto, a formação necessitava de um impulso para ser mais competitiva. Já era muito organizada, o Porto é um clube que trabalha com a periodização tática, algo incrível, mas careciam de mais agressividade ofensiva, mais capacidade goleadora, mais iniciativa para jogar por fora e romper linhas.
Por isso me levaram, para acrescentar esses elementos ao que já lá tinham. Como um jovem treinador - eu tinha apenas 24 anos quando cheguei a Portugal e não falava uma só palavra em português -, era um sonho poder sair de meu país e aprender. O povo português sempre estará em meu coração.
No Porto, trabalhava todas as manhãs, tardes e noites, mas com equipes diferentes. Era algo exaustivo. Eu queria seguir trabalhando todas as manhãs, tardes e noites, mas queria também poder concentrar todas as informações que havia aprendido em apenas 20 atletas. Eu queria treinar minha própria equipe.
"TRENT É UMA INSPIRAÇÃO PARA MUITOS GAROTOS EM LIVERPOOL, E LEVOU A POSIÇÃO DE LATERAL-DIREITO A UM NÍVEL DIFERENTE"
No Liverpool, havia essa equipe: Rhian Brewster, Ben Woodburn, Herbie Kane, Yan Dhanda, Caoimhin Kelleher como goleiro... E, claro, Trent Alexander-Arnold.
Trent tinha uma paixão incrível. Um lateral-direito que se esforçava ao máximo a cada dia. Sempre queria mais, e eu via nele um garoto que necessitava ter a confiança dos treinadores. Então, a primeira coisa que fiz foi colocá-lo como capitão do time e como organizador no meio-campo.
Tenho a convicção que os jogadores mais talentosos são aqueles que devem ficar mais com a bola. Portanto, passamos a jogar com uma linha de três na defesa, um losango no meio, e três atacantes. Ben Woodburn jogava de meia-atacante, e Trent era um dos homens de meio. Eu identificava nele alguém capaz de dar o último passe, de praticamente qualquer lugar do campo. Oportunidade que surge com mais frequência para um meio-campista.
Rúben Neves tinha sido meu meio-campista em todas as categorias de base do Porto e, naquela mesma posição, Trent tinha capacidade de impactar o jogo com seus passes. Por isso que atualmente o vemos jogar por dentro com frequência, enquanto Mo Salah joga por fora.
Contei com o Trent por uma temporada. Fez gols, criou e deu assistências para outros tantos, mas também tornou-se mais responsável com a faixa de capitão e com a nova posição em campo. Com o tempo, pude vê-lo crescer, de verdade. Podia eu, então, imaginar o que faria no futuro, aos 18, 19 anos? Claro que não, porque ninguém consegue isso. Mas ver seu crescimento como pessoa, jogador e líder é das coisas mais bonitas para alguém que trabalha com o futebol de base.
Fico orgulhoso não apenas pelo que tem feito, mas sobretudo por quem ele é. Ele é uma inspiração para muitos garotos em Liverpool, e levou a posição de lateral-direito a um nível completamente diferente no mundo do futebol. Estou muito feliz de seguir sendo seu treinador. Conversamos muito, claro, e temos uma relação bem próxima. Não aparecem tantos capitães ao longo da vida. Trent foi o meu.
Em retrospectiva, vejo que aquele meu primeiro ano no Liverpool foi um dos mais cruciais em minha carreira como técnico. Claro que ia assistir os jogos do time principal em Anfield, mas também estava sempre ocupado com meu próprio time, que era a minha paixão.
"QUANDO FALEI COM BRENDAN, PEDI PARA SER TREINADOR DO TIME PRINCIPAL. NÃO ERA PARA VER OS TREINOS; EU QUERIA TREINAR, QUERIA DIRIGIR”
Eu sabia que Brendan Rodgers era alguém que também se preocupava com a base. Por isso, contávamos com Alex Inglethorpe e Michael Beale na formação. Entretanto, o único contato que tínhamos tido até aquele momento havia sido durante minha primeira visita ao hotel Hope Street. Alex me disse que Brendan estava de férias, mas que tinha se colocado à disposição para retornar de viagem caso fosse preciso para me convencer a aceitar a proposta. Naquele instante, entendi que o clube realmente tinha interesse em meu trabalho.
Posteriormente, durante meu primeiro ano, Brendan estava cogitando alterar a defesa para uma linha de três e pediu a Alex que fôssemos conversar com ele. Queria saber como se configurava a minha equipe, como pressionava, quais eram suas ideias. Foi uma conversa muito agradável sobre futebol e sobre a vida. Uma hora e meia, talvez duas horas, regadas a chá e algumas bolachas. Ao melhor estilo inglês.
Naquele verão, eu estava de férias na Holanda e o presidente do FSG, Mike Gordon, me ligou. Queria que eu falasse com o Brendan, que estava em Marbella. Meu avô não atravessava um bom momento e eu queria ficar perto dele na Holanda. Mas ele sempre foi um trabalhador dedicado, era um cara apaixonado. “Não seja ridículo!”, disse. “Se o dono do Liverpool te pede para ir, você vai. Tem que ir”.
Voei a Marbella com meu avô em mente, e ali conversamos, Brendan e eu.
“Não posso ir para colocar cones ou fazer trabalhos individuais com os jogadores", falei. “Se me quer, faça de mim treinador da equipe principal. Não quero assistir o treino. Quero treinar, quero dirigir. É o que gosto de fazer. Caso contrário, prefiro seguir na base”.
Juntei-me a Brendan no time principal no início da temporada 2015/16. Empatamos muitos jogos e, em outubro, os proprietários consideraram que havia chegado o momento de trocar de treinador. Mike Gordon me ligou outra vez.
"Pep, você precisa permanecer e fazer parte da comissão do novo técnico. Mas precisarei de tempo, então assegure-se de que Melwood funcione".
"TRABALHAR COM KLOPP FOI COMO SER CRIANÇA E ENTRAR NUMA LOJA DE DOCES"
No fim, o novo treinador acabou por ser Jürgen Klopp.
Para mim, foi a mesma sensação de ser criança numa loja de doces. Ter a chance de trabalhar com um dos melhores treinadores do mundo, ver como inspirava a equipe, como deixava as coisas claras, a forma que estruturávamos a semana… Eu sempre fui um treinador de pressão alta, sempre gostei disso, mas ele trouxe outro tipo de reuniões, de análises. E cada momento me encantava. A cada dia, eu anotava algumas das coisas que ele dizia, do que fazia. Ainda guardo essas folhas.
Meu pai tinha uma gráfica e, ao longo dos anos, tinha feito aqueles flip charts - dos grandes - onde eu anotava todos os meus princípios a medida que se desenvolviam. Essa é a minha ideia de jogo, assim quero criar superioridades desde a defesa, assim quero fazer a pressão pós-perda…
Quando Brendan era o treinador, eu tinha cinco grandes tópicos às vistas no escritório: com a bola, pressionando, pressão pós-perda, a ideia de jogo e o desenvolvimento individual. Recém-chegado, Jürgen entrou no escritório.
"Quem fez isto?”.
“Assim é como vejo o jogo, chefe”, respondi. “Assim é como trabalho. Quer que eu tire isto daqui?"
"Não, não, não!”, falou. “Gostei de ver!”.
Ficou claro, então, que era o técnico ideal. Além de ser um dos melhores líderes, é uma boa pessoa. Fico feliz com a relação que temos e com o fato de ter me dado liberdade e responsabilidade em minha função.
"MILNER E HENDERSON SÃO O MOTOR DO LIVERPOOL. LIDERAM COM EXEMPLOS E ASSEGURAM-SE QUE O NÍVEL DE EXIGÊNCIA NÃO BAIXE"
Na primeira temporada de Jürgen, perdemos a final da Copa da Liga, nos pênaltis, contra o Manchester City, e a final da Liga Europa para o Sevilla na Basileia. Eu nem sequer era treinador da primeira equipe naquele momento - era o treinador de desenvolvimento dos jovens de elite, portanto integrava a comissão, mas não era responsável pelo treinamento -, mas, mesmo assim, eram as minhas duas primeiras finais perdidas no futebol profissional. E isso doeu demais.
Retornamos ao hotel na Basileia, onde o clube organizou uma grande festa - o Liverpool faz muito bem esse tipo de coisa -. Jürgen pegou o microfone.
"Gente, qualquer um que pensar que isso é o final estará completamente equivocado. Isso é só o começo”.
Lembrei disso quando ganhamos do Leicester, nos pênaltis, na Copa da Liga na temporada passada. Lembrei da derrota daquela primeira final contra o Manchester City. Quando nos classificamos, me dirigi imediatamente a James Milner.
"Vamos consertar isso, ‘Milly’", falei. "Este ano, vamos fazer direito”.
Óbvio que é mais fácil contar isso agora depois que realmente fizemos. Mas ‘Milly’ e Jordan Henderson são o motor do time, lideram com exemplos e asseguram-se que o nível de exigência não baixe.
Quando se tem líderes assim - e, naquele momento, também estava Adam Lallana -, sua vida como técnico é muito mais fácil. Em vários momentos, quero gritar algo ao grupo e escuto ‘Milly’ passando o mesmo recado.
Os valores e os padrões de uma equipe são feitos pelas pessoas que a integram. E com os jogadores adequados, a equipe vira praticamente autônoma. Por isso, dei a faixa de capitão de minha equipe a Trent. Percebi seu potencial de líder, de alguém que se levanta e luta quando os jogos ficam complicados.
"MANÉ ERA UM GUERREIRO, UM JOGADOR QUE SE ESFORÇAVA, QUE JOGAVA NO LIMITE E, AO MESMO TEMPO, ESTAVA MUITO DESENVOLVIDO TATICAMENTE"
Então, tínhamos uma base e, aos poucos, fomos trazendo novas peças ao elenco. Virgil van Dijk foi uma delas, Alisson Becker foi outra. Nas adversidades, você precisa de líderes de personalidade, gente que nunca pisa no freio, que esteja pronta para atravessar os muros e dar os 100 por cento. Esta é a vantagem de contar com jogadores que tenham vindo da formação. Nunca, nunca irão te deixar na mão.
Os bons momentos - como a semifinal da Liga dos Campeões de 2019 contra o Barcelona - só acontecem por causa do trabalho realizado nos anos anteriores. Sempre a mesma mensagem, sempre as mesmas ideias e, depois, trata-se de encontrar os jogadores que podem se encaixar nisso.
Naquele primeiro verão depois da chegada de Jürgen, encontramos alguns eles. Gini Wijnaldum havia sido rebaixado com o Newcastle, mas necessitávamos de um jogador com suas características, que desse equilíbrio ao time, que pudesse ligar a defesa ao ataque, que conseguisse encontrar os espaços adequados. Jogava com um sorriso no rosto e com um grande coração. Quando dizíamos algo a ele, sempre entendia.
Joël Matip talvez tenha sido a melhor contratação gratuita da história do futebol mundial. E aí, veio Sadio Mané. A máquina. Quando eu passava pelo Sadio, não o cumprimentava, só dizia: “Zas!", porque era muito rápido. Mas também era um guerreiro, era um jogador que se esforçava, que jogava no limite e, ao mesmo tempo, estava muito desenvolvido taticamente. O que fez pelo clube foi enorme.
Creio que Bill Shankly disse que um time de futebol necessita de três jogadores que consigam tocar o piano, e outros oito que o carreguem. Mas nós tínhamos três atacantes que também conseguiam carregar o piano: Sadio, Mo Salah e Roberto Firmino. Todos com a capacidade de criar e marcar no último terço. Sem falar nas diferentes qualidades acrescentadas por Luis Díaz, Diogo Jota ou Divock Origi.
Como expliquei anteriormente, naquele momento eu era o treinador de desenvolvimento dos jovens de elite. Tinha passado a minha vida inteira planejando, preparando e dando treinos, mas não o fazia no Liverpool. Jürgen e Zeljko Buvac dirigiam a equipe, e eu os apoiava. Conduzi alguns treinos, mas eles me diziam o que precisava ser feito e eu tinha a constante sensação de que algo não ia bem. Sou apaixonado, ambicioso e não acredito que nada de bom aconteça quando estamos na zona de conforto.
"O NEC NÃO FOI UM PERÍODO FÁCIL. A EQUIPE VINHA DE UM REBAIXAMENTO E A COBRANÇA ERA ENORME"
E tinha ainda a minha situação pessoal. Meu pai estava muito doente e, como filho mais velho, me sentia cada vez mais culpado de não estar presente. Não só pelo meu pai, mas também pela minha mãe e pelo meu irmão. Tinha a enorme sensação de que precisa voltar a casa.
A vida é uma questão de oportunidades e timing e, no fim de 2017, surgiu a chance de assumir o comando do NEC Nijmegen. Era um clube que queria subir à primeira divisão holandesa, mas que não tinha o melhor histórico sobre como lidava com seus treinadores.
Sendo um jovem treinador ambicioso, pensei que seria diferente comigo.
No entanto, o momento não era o mais adequado. A temporada estava em andamento, algo que complica as coisas para quem valoriza o processo, como eu. Mas tivemos um começo incrível num campo de treinamentos em Marbella. Pude perceber claramente o que buscávamos e como queríamos jogar.
Ganhamos nossa primeira partida. Jogamos bem e a equipe assimilou a forma que queríamos atuar. Durante o restante da temporada, passamos por muitos altos e baixos, e me senti muito orgulhoso de como a equipe os encarou. Não foi um período fácil. A equipe vinha de um rebaixamento e os torcedores eram muito críticos, a cobrança era enorme. Era compreensível que desejassem o acesso de divisão. Não queriam que o clube e a cidade sofressem daquela maneira.
Precisei gerir situações de jogadores e funcionários que fizeram parte da campanha do descenso. Em fim de contrato, as pessoas não sabiam quem ficaria ou sairia do clube. E conseguimos resolver de uma maneira que mantivemos a união para lutar até a última rodada.
Entramos nos playoffs do acesso, onde perdemos por 4 a 0 contra o Emmen, depois de termos vencido por 4 a 1, em casa. Chegamos perto, mas não foi o suficiente.
Naquele momento, me encontrava num lugar escuro, mas agora olho para trás e agradeço por ter vivido essa experiência. Espero ser um cara que não comete o mesmo erro duas vezes, e as coisas que aprendi ali - sobre a formação, a metodologia, a direção de uma equipe, a intenção de criar consistência, a fidelidade a uma ideia - me ajudaram quando retornei ao Liverpool como auxiliar técnico.
A bola rolava quando Jürgen me telefonou já na parte final daquela temporada.
“Pep, teremos mudanças aqui. Quero que retorne ao clube para ser meu principal auxiliar. Juntos, vamos conquistar o mundo!".